"De repente, este Verão, uma voz desconhecida do grande público entrou nos nossos ouvidos, discreta mas insistentemente, sem ninguém explicar que o futuro do Fado passa por ela ou fazer a lista das inovações que ficaríamos a dever-lhe.
Um pouco como antigamente, primeiro chegou a canção; depois, o prazer duma voz. Só agora,finalmente, vem a altura de tirar a fotografia a quem está a cantar.
Chama-se Luísa Rocha. Canta o fado... desde sempre!, profissionalizando-se há uns dez anos e tendo actuado metade desse tempo no Marques da Sé e a outra no Clube de Fado, onde canta regularmente; pelo meio, participou no Festival de Zamora e teve uma pequena actuação ao vivo no filme "Amália".
Mas nunca teve pressa em gravar. Aprendeu devagarinho; há coisas que se aprendem melhor sem pôr o carro à frente dos bois. E talvez ainda não tivesse gravado se não fosse o entusiasmo dum grande músico, o viola Carlos Manuel Proença, que se apaixonou pela sua voz.
O disco foi preparado com vagares próprios da grande gastronomia. Sem uma receita milagrosa e bombástica mas com os melhores ingredientes: músicos de primeira água, um reportório onde as versões e os temas originais se equilibram sabiamente e um estúdio onde as coisas demoraram o que tinham de demorar, uns temas sendo rapidamente gravados, outros requerendo um pouco mais de tempo para casar as palavras e as músicas, para os arranjos ficarem como devia ser, para a voz servir as palavras, Luísa, discreta e eficaz, sabendo que uma interpretação é apenas tão boa quanto ficar aquilo que se canta afinal de contas, o que chega até nós e mais profundamente mexe connosco.
Acompanhante habitual de Camané, Carlos do Carmo, Aldina e Mísia e tocando também com artistas como Cristina Branco, Paulo de Carvalho ou António Zambujo, fácil seria a Carlos Manuel Proença reunir os melhores músicos para mais um trabalho como produtor.
E recrutou em primeiro lugar o seu camarada de armas mais frequente, o grande (sob todos os aspectos!) José Manuel Neto que toca em metade das faixas do disco. Só a presença destes dois seria já notícia quem gosta de Fado sabe o que estamos a dizer. Mas há mais.
O álbum de estreia de Luísa Rocha é uma verdadeira cimeira de guitarristas. Para além de José Manuel Neto, encontramos aqui (só...!) Mário Pacheco, Custódio Castelo e Ricardo Rocha, guitarristas que têm feito ao longo dos últimos quinze anos, como solistas ou como acompanhadores, alguma da mais importante discografia do Fado e da Guitarra. E encontramos também o mais jovem Guilherme Banza que já acompanhou Kátia Guerreiro, Ana Moura e Raquel
Tavares.
E encontramos também, Daniel Pinto (baixo acústico) e Luís Clode (violoncelo) e os cantores Tó Cruz e Paulo Ramos, as duas vozes que aparecem de surpresa no 1º single de Luísa Rocha, um fado-canção inédito de Paulo de Carvalho, "Dou-te um Beijo (e Fujo de Ti)".
Luísa Rocha move-se com o mesmo à-vontade no fado-canção e nos fados tradicionais, nos inéditos e no reportório que foi aprendendo com a sua experiência e com os seus músicos. Na velha criação da hoje injustamente esquecida Maria José da Guia, "Sem Ti", podemos adivinhar a resposta dum
coro, quase em surdina, feito por frequentadores da Revista ou duma Casa de Fados; isto é música para quem sabe.
E na adaptação musical de Mário Pacheco para um comovente poema de José Carlos Ary dos Santos, "Na Mesa do Santo Ofício", fica o registo muito menos tranquilizante de que o Fado sempre pôde ser também voz da dor e dos excluídos. Paradoxal? Nada. Será preciso lembrar grandes exemplos de quem soube incluir na mesma voz e nos mesmos espectáculos a maior alegria e o mais profundo sofrimento?
Na selecção de trechos já antes gravados, o dedo de quem conhece vê-se nas escolhas pouco óbvias de algum material recente que não teve todo o destaque que teria merecido. É o caso de "Mar Menor" (António Lobo Antunes/José Luís Tinoco) do álbum "Margens", que Carlos do Carmo gravou na 2ª metade dos anos 90, Luísa mantendo a elegância de Carlos do Carmo e acrescentando-lhe a sensualidade tranquila da sua voz; ou da faixa que dá o nome ao álbum, "Por
uma Noite de Amor", uma música de Carlos Manuel Proença com letra de Mário Raínho, que Vasco Rafael gravou.
Com um equilíbrio simétrico, as composições distribuem-se entre os fados tradicionais Mocita dos Caracóis, Sérgio, Lopes, Licas, Valejo e Acácio, - e os chamados fados musicados faixas 2, 3, 4, 6, 9 e 12.
E idêntica disparidade de origens, sabiamente misturada, se verifica nas letras, poetas como os já citados Ary dos Santos e Lobo Antunes ou Vasco Graça Moura, que assina "Toada do Desengano", ombreando com os muito fadistas Mário Raínho (3 letras), António Laranjeira (2) e Paulo de Carvalho, este repetindo a gracinha de ciclicamente nos oferecer um daqueles trechos (letra e música suas) que acabaremos por cantarolar.
Não vamos contar aqui o disco todo! É para ouvir; e ninguém se vai arrepender quando o fizer. Mas sempre adiantamos que no meio deste álbum que flui como se se tratasse dum pequeno espectáculo temos uma guitarrada que ocupa boa parte da faixa nº 7, "Clave de Sol, Fado e Guitarrada".
Para nossa grande sorte, Neto e Proença não resistiram à tentação. E quando, ao ouvirem o resultado, lhes pareceu que o instrumental tinha ficado demasiado longo foi a vez de Luísa bater o pé e dizer que era assim mesmo que ia ficar. Em boa hora...
O magnífico "Silêncio" fecha o disco, com a inesperada entrada dum violoncelo que sublinha o recolhimento da despedida. Nela se conclui esta prova de fogo que faz de Luísa Rocha uma intérprete que queremos voltar a ouvir.
"Uma Noite de Amor", produzido por Carlos Manuel Proença e gravado por Fernando Nunes, ouve-se tão bem e tão depressa como se estivéssemos ali, Luísa cantando ao pé de nós.
Não se espantem, pois, se alguém trocar o nome do disco e lhe chamar "Um Amor duma Noite"...!" (David Ferreira)
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