07/05/2018

TIO REX | Discurso Direto


Assina no BI como Miguel Reis, mas é como Tio Rex que tem vindo a tecer canções folk com a delicadeza da porcelana, alternando entre a língua de Pessoa e o coração de Whitman. No passado mês de Março editou “5 Tragedies”, EP composto por 5 contos temerosos onde as canções íntimas e introspetivas de discos anteriores dão agora lugar a temas mais expansivos e com um lado sinfónico. Tio Rex desvenda hoje as 5 canções deste novo disco no "Faixa a Faixa".

1. The Dark Con of Man

The Dark Con of Man, além de ser a primeira tragédia no disco, foi também a primeira das 5 a ser escrita. A canção em si debruça-se, de uma maneira geral, sobre a condição humana e em como, de uma forma ou de outra, nos subjugamos e servimos uns dos outros neste mundo de interesses em que vivemos. Por um lado funciona como cautionary-tale, na medida em que é um alerta perante a presença de uma força ambiciosa e determinada (representada na forma de um cavaleiro) que não olhará a meios para atingir a sua ambição, servindo-se de inocentes, e comprometendo-lhes a integridade, pureza e inocência, em troca de uma promessa de sucesso. Sempre quis que houvesse uma ponte para um ambiente ancestral no tempo, daí a imaginação da história no contexto dos cavaleiros e das grandes batalhas, mas no fundo vejo isso como ponto de partida para falar de algo que continua a acontecer nos dias de hoje (na política, nos negócios, nas indústrias..). Nessa medida acho que a canção acaba por nascer de um contrasenso, uma vez que em termos de conteúdo a história é altamente datada, mas a canção não deixa de falar de algo que continua a acontecer nos dias de hoje, a toda a hora, à nossa volta.



2. A Harsh Self-Realization

Este talvez seja, dos 5, o tema mais denso e introspectivo. A canção partiu da reflexão sobre aquilo que cada um, em auto-análise, acha que é, por oposição ao que os outros vêem ao olhar para nós -, que a meu ver nunca coincidem a 100%. Daí, cedo surgiu a ideia de haver na canção um jogo entre essas duas percepções, na procura por uma identidade que na verdade “não existe”, uma vez que essas análises partem sempre de pontos de vista e ângulos diferentes. Em termos de sonoridade, e por ver o tema como um exercício inocente de tomada de consciência, imaginei a canção a viajar por entre texturas doces e delicadas (materializadas na mesma pelas melodias de violino e clarinete) e a culminar no “desmoronamento” das ideias pré-concebidas que temos de nós próprios, e que os outros têm de nós (representado pelo climax instrumental e lírico na ultima secção da canção). Aqui, a tragédia acaba por ser esse desmoronamento que, sendo natural e intrínseco ao crescimento de um ser humano e à construção da sua identidade, não deixa de ter um lado nocivo, dado que acaba por se resumir à destruição uma “não-verdade” adquirida, desamparando quem até à data regia a sua vida com base nela.



3. This is an Intervention

This is an Intervention é exactamente aquilo que se propõe a ser. Partindo da aflição de ver alguém “perdido”, a deixar-se consumir por um vício (seja ele qual for; e há muitos além do álcool, as drogas e o tabaco), surgiu-me a necessidade de escrever uma canção de confronto. Não sou nenhum santo com a autoridade para olhar para alguém de cima e me sentir legitimado a dizer-lhe que está a fazer algo de errado mas, apesar de ter escrito a canção para uma pessoa em concreto, quando dei por mim constatei que aquilo se aplicava a mais pessoas à minha volta e, até certo ponto, a mim mesmo. Na sua construção, quis que a canção fosse marcada por uma constante acumulação de tensão, concretizada pelo crescente grau de caos e elementos que a compõem, de certa maneira em paridade com o sentimento de sufoco e desamparo de quem se encontra preso numa espiral descendente. Para tal, o ponto de partida foi (numa espécie de jam) juntar acústica, piano, lapsteel e eléctricas, saxofone, contrabaixo e bateria, e fazê-los “lutar” uns com os outros, culminando numa ruideira ensurdecedora quase indiscernível que, eventualmente, possa provocar algum tipo de despertar no destinatário da canção. Seja ele quem for.



4. The Gods are Dying

Em 2012 fui sozinho àquele que viria a ser o último concerto que o Leonard Cohen, na altura com 78 anos, daria em Portugal. Lembro-me de pensar que aquele senhor, uma tremenda influência com estatuto de “Deus” no meu universo pessoal, se estava de alguma maneira a despedir. Saí do concerto de coração cheio (nunca seria de outra maneira, depois de ver um ídolo dar um concerto exímio de mais de 3 horas com aquela idade), mas ao mesmo tempo com a sensação de que não o voltaria a ver. Quando, em 2014, o Pete Seeger morreu, essa perda bateu-me imenso, pela incrível carreira e influência que teve na Música, mas também pela humanidade e vertente interventiva com que brindou o mundo com a sua existência. Nesse dia dei por mim a olhar para trás para o concerto do Cohen e a pensar em todos o “Deuses” que temos perdido ao longo dos anos: sobre aqueles que partiram antes do meu tempo, sobre dificilmente vir a ter a oportunidade de ver os mais velhos que raramente ou nunca passam por Portugal… Foi nesse dia que, em reacção a tudo isto, e como impulso provocado pela reflexão sobre a perda gradual destas pessoas, escrevi esta canção. No fundo não é mais que um bradar aos céus, em tom de homenagem, pela perda de artistas que foram e continuam a ser meus “professores”, modelos, e, em boa parte, responsáveis por eu fazer música hoje.



5. The Sinking of S.S. Friendship

The Sinking of S.S. Friendship, sendo a tragédia que fecha o disco, é também a canção mais nostálgica. Acredito que, a dada altura, na vida de cada um, muitos de nós tiveram (ou têm) amigos com quem passaram horas e horas a conversar, entre copos, no spot do costume a que chamamos “nosso”. Aquelas noites longas onde tão depressa se discute filosofia, arte e a existência, como o golaço da jornada desse fim de semana, o novo filme do Tarantino ou última barracada nas redes sociais. Aqui, a tragédia é o fim des-ses núcleos, tempos ou relações. A que nos põe a olhar para trás e a constatar que, por força das voltas que a vida dá, os espaços fecham, as pessoas se afastam e no fim restam apenas as memórias. Tendo o disco sido todo escrito em inglês, e por esta canção falar de amizade e de partilhas, foi clara e natural a necessidade de chamar um amigo para quebrar o ambiente pesado e negro do EP, e fechá-lo com uma quadra inteira cantada em português, meio que em tom de aceitação desta e das outras tragédias. Posto isto, passou um instante enquanto desafiei o João Mota (Um Corpo Estranho), amigo e letrista super talentoso e com quem partilhei muitas dessas noites e momentos, a ser a voz e luz que conclui este novo capítulo de Tio Rex. Porque os momentos, espaços e relações vão e vêm, mas felizmente ainda temos as canções os para imortalizar.


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