As senhas da Revolução, é sabido, foram duas canções que fazem hoje parte do
cancioneiro da Música Popular Portuguesa.
O papel da música no derrube da ditadura não começou apenas, no entanto, na
madrugada de 25 de Abril de 1974. Numa edição Livros Zigurate, chegou ontem às livrarias “A Revolução Antes da Revolução – O ano que
mudou a música popular portuguesa”, um livro da autoria de Luís de Freitas Branco.
“A Revolução Antes da Revolução” é o primeiro livro de Luís de Freitas Branco, uma incursão editorial que se insere numa tradição familiar de escrita e reflexão sobre música: é trineto do compositor Luís de Freitas Branco e bisneto do musicólogo João de Freitas Branco. Luís de Freitas Branco revela hoje em "Discurso Direto como a música popular portuguesa as portas para o clima cultural, social e político que desencadeou o dia “inicial inteiro e limpo” e que mudou Portugal há 50 anos.
Luís de Freitas Branco - Comecei esta investigação com uma única certeza: algo aconteceu em 1971 que transformou radicalmente a música popular portuguesa, e hoje, mais de cinquenta anos depois, ainda é uma vertigem o progresso musical e os acontecimentos históricos que ocorreram em apenas 12 meses. Entre os álbuns e eventos, destaco: à cabeça, os três álbuns gravados em Paris, no Château d'Hérouville, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" de José Mário Branco; "Cantigas do Maio" de José Afonso; e "Os Sobreviventes" de Sérgio Godinho. Em Lisboa, mais obras-primas, "Movimento Perpétuo" de Carlos Paredes e "Gente de Aqui e de Agora" de Adriano Correia de Oliveira, a libertação musical e espiritual dos Duo Ouro Negro em "Blackground"; o pioneirismo de José Cid ou dos Petrus Castrus; ou o movimento dos baladeiros, Manuel Freire, Francisco Fanhais, José Jorge Letria. E ainda, três eventos cruciais: um controverso Festival da Canção que premeia "Menina” de Nuno Nazareth Fernandes e Ary dos Santos, na voz de Tonicha, e revelou definitivamente Fernando Tordo e Paulo de Carvalho; o Festival Vilar de Mouros, o primeiro grande festival de rock nos moldes que estamos acostumados, que se acreditarmos no PIDE de serviço, foi a maior orgia de sexo e drogas que alguma vez ocorreu em Portugal; e claro, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais, um evento de uma magnitude e cartaz inconcebível em Portugal, com a célebre dedicatória de Charlie Haden, contrabaixista de Ornette Coleman, aos movimentos de libertação africanos, que resultou na sua prisão. É um universo imenso, um retrato quase completo da nossa canção, em apenas um ano. Este foi o ponto de partida que me levou, entre 2020 e 2022, a entrevistar cerca de 50 músicos, e a investigar centenas de jornais, revistas e documentos da época.
Durante o ano de 2021, quando se assinalavam 50 anos de 1971, publiquei regularmente, uma vez por mês, um longo artigo de investigação no Observador sobre uma temática diferente da música popular portuguesa; esses artigos foram a base para este livro, que continuei a trabalhar nos anos seguintes até editar finalmente agora, em 2024, a tempo de celebrar os 50 anos do 25 de Abril Antes da revolução política do 25 de Abril, houve de facto uma revolução cultural que antecipou o fim da ditadura, sobretudo em 1971, por razões que vou explicando ao longo do livro. Eu não vivi 71, nem 74, eu nasci em 1988; e isto tem uma vantagem fantástica; tive total liberdade para refletir sobre este período. A minha geração vive a música de forma totalmente diferente, as barreiras entre o elitismo e o provincianismo, entre o popular e o popularucho, entre o rock e a canção romântica, foram violentamente derrubadas, , sobretudo nos últimos anos. E ainda bem. Marco Paulo, Tony de Matos, António Mourão, Paco Bandeira, Tonicha, Quim Barreiros, são cruciais para contar a história da música popular portuguesa, e eles também são celebrados aqui.
Neste momento que celebramos os 50 anos do 25 Abril, uma das minhas principais preocupações foi encontrar outras vozes, outras histórias, outras perspectivas, por exemplo, as mulheres do canto de intervenção, contra todas as barreiras que a sociedade impunha; o rock português, que deveria ser o líder natural da juventude, seguindo a lógica da cultura ocidental, mas foi absolutamente atropelado e censurado na Primavera Marcelista; os fados revolucionários de José Manuel Osório; ou as diversas canções de independência desenvolvidas nas ditas colónias ultramarinas, particularmente em Angola. A música popular portuguesa permanece em movimento, devemos celebrá-la, mas também confrontar o passado com o presente, não deixar cair estas histórias no esquecimento, mas também não as fechar numa redoma musical ou ideológica; a música precisa de circular, ser um agente de mudança, e cabe-nos celebrar e desafiar a sua passagem.