26/01/2011

LUÍSA ROCHA | "Uma Noite de Amor"

"De repente, este Verão, uma voz desconhecida do grande público entrou nos nossos ouvidos, discreta mas insistentemente, sem ninguém explicar que o futuro do Fado passa por ela ou fazer a lista das inovações que ficaríamos a dever-lhe.
Um pouco como antigamente, primeiro chegou a canção; depois, o prazer duma voz. Só agora,finalmente, vem a altura de tirar a fotografia a quem está a cantar.
Chama-se Luísa Rocha. Canta o fado... desde sempre!, profissionalizando-se há uns dez anos e tendo actuado metade desse tempo no Marques da Sé e a outra no Clube de Fado, onde canta regularmente; pelo meio, participou no Festival de Zamora e teve uma pequena actuação ao vivo no filme "Amália".
Mas nunca teve pressa em gravar. Aprendeu devagarinho; há coisas que se aprendem melhor sem pôr o carro à frente dos bois. E talvez ainda não tivesse gravado se não fosse o entusiasmo dum grande músico, o viola Carlos Manuel Proença, que se apaixonou pela sua voz.
O disco foi preparado com vagares próprios da grande gastronomia. Sem uma receita milagrosa e bombástica mas com os melhores ingredientes: músicos de primeira água, um reportório onde as versões e os temas originais se equilibram sabiamente e um estúdio onde as coisas demoraram o que tinham de demorar, uns temas sendo rapidamente gravados, outros requerendo um pouco mais de tempo para casar as palavras e as músicas, para os arranjos ficarem como devia ser, para a voz servir as palavras, Luísa, discreta e eficaz, sabendo que uma interpretação é apenas tão boa quanto ficar aquilo que se canta ­ afinal de contas, o que chega até nós e mais profundamente mexe connosco.
Acompanhante habitual de Camané, Carlos do Carmo, Aldina e Mísia e tocando também com artistas como Cristina Branco, Paulo de Carvalho ou António Zambujo, fácil seria a Carlos Manuel Proença reunir os melhores músicos para mais um trabalho como produtor.
E recrutou em primeiro lugar o seu camarada de armas mais frequente, o grande (sob todos os aspectos!) José Manuel Neto que toca em metade das faixas do disco. Só a presença destes dois seria já notícia ­ quem gosta de Fado sabe o que estamos a dizer. Mas há mais.
O álbum de estreia de Luísa Rocha é uma verdadeira cimeira de guitarristas. Para além de José Manuel Neto, encontramos aqui (só...!) Mário Pacheco, Custódio Castelo e Ricardo Rocha, guitarristas que têm feito ao longo dos últimos quinze anos, como solistas ou como acompanhadores, alguma da mais importante discografia do Fado e da Guitarra. E encontramos também o mais jovem Guilherme Banza que já acompanhou Kátia Guerreiro, Ana Moura e Raquel Tavares.
E encontramos também, Daniel Pinto (baixo acústico) e Luís Clode (violoncelo) e os cantores Tó Cruz e Paulo Ramos, as duas vozes que aparecem de surpresa no 1º single de Luísa Rocha, um fado-canção inédito de Paulo de Carvalho, "Dou-te um Beijo (e Fujo de Ti)".
Luísa Rocha move-se com o mesmo à-vontade no fado-canção e nos fados tradicionais, nos inéditos e no reportório que foi aprendendo com a sua experiência e com os seus músicos. Na velha criação da hoje injustamente esquecida Maria José da Guia, "Sem Ti", podemos adivinhar a resposta dum coro, quase em surdina, feito por frequentadores da Revista ou duma Casa de Fados; isto é música para quem sabe.
E na adaptação musical de Mário Pacheco para um comovente poema de José Carlos Ary dos Santos, "Na Mesa do Santo Ofício", fica o registo muito menos tranquilizante de que o Fado sempre pôde ser ­ também ­ voz da dor e dos excluídos. Paradoxal? Nada. Será preciso lembrar grandes exemplos de quem soube incluir na mesma voz e nos mesmos espectáculos a maior alegria e o mais profundo sofrimento?
Na selecção de trechos já antes gravados, o dedo de quem conhece vê-se nas escolhas pouco óbvias de algum material recente que não teve todo o destaque que teria merecido. É o caso de "Mar Menor" (António Lobo Antunes/José Luís Tinoco) do álbum "Margens", que Carlos do Carmo gravou na 2ª metade dos anos 90, Luísa mantendo a elegância de Carlos do Carmo e acrescentando-lhe a sensualidade tranquila da sua voz; ou da faixa que dá o nome ao álbum, "Por uma Noite de Amor", uma música de Carlos Manuel Proença com letra de Mário Raínho, que Vasco Rafael gravou.
Com um equilíbrio simétrico, as composições distribuem-se entre os fados tradicionais ­ Mocita dos Caracóis, Sérgio, Lopes, Licas, Valejo e Acácio, - e os chamados fados musicados ­ faixas 2, 3, 4, 6, 9 e 12.
E idêntica disparidade de origens, sabiamente misturada, se verifica nas letras, poetas como os já citados Ary dos Santos e Lobo Antunes ou Vasco Graça Moura, que assina "Toada do Desengano", ombreando com os muito fadistas Mário Raínho (3 letras), António Laranjeira (2) e Paulo de Carvalho, este repetindo a gracinha de ciclicamente nos oferecer um daqueles trechos (letra e música suas) que acabaremos por cantarolar.
Não vamos contar aqui o disco todo! É para ouvir; e ninguém se vai arrepender quando o fizer. Mas sempre adiantamos que no meio deste álbum ­ que flui como se se tratasse dum pequeno espectáculo ­ temos uma guitarrada que ocupa boa parte da faixa nº 7, "Clave de Sol, Fado e Guitarrada".
Para nossa grande sorte, Neto e Proença não resistiram à tentação. E quando, ao ouvirem o resultado, lhes pareceu que o instrumental tinha ficado demasiado longo foi a vez de Luísa bater o pé e dizer que era assim mesmo que ia ficar. Em boa hora...
O magnífico "Silêncio" fecha o disco, com a inesperada entrada dum violoncelo que sublinha o recolhimento da despedida. Nela se conclui esta prova de fogo que faz de Luísa Rocha uma intérprete que queremos voltar a ouvir.
"Uma Noite de Amor", produzido por Carlos Manuel Proença e gravado por Fernando Nunes, ouve-se tão bem e tão depressa como se estivéssemos ali, Luísa cantando ao pé de nós.
Não se espantem, pois, se alguém trocar o nome do disco e lhe chamar "Um Amor duma Noite"...!" (David Ferreira)

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