07/04/2012

UXU KALHUS | Discurso Direto


Depois de "A Revolta dos Badalos" (2006) e "Transumâncias Groove" (2009), já está disponível nas lojas o 3º capítulo da "aventura musical" dos Uxu Kalhus - "Extravagante", "um objecto de tele-transporte cultural do passado para o presente". Hoje recebemos no Portugal Rebelde o Tó Zé e o Paulo Pereira, que em "Discurso Direto" nos falam desta "revolução"  que é (re)inventar o nosso património musical.

Portugal Rebelde - Ao 3º disco, uma vez mais, os Uxu Kalhus têm como ponto de partida a “tradição”, cruzando-a com a modernidade. Parafraseando o Tiago Pereira, é a Música Portuguesa a Gostar dela Própria? 

Tó Zé - Temos um imenso património que é nosso e que é preciso (re)descobrir. Ao contrário do que aconteceu nos Séculos XV e XVI, é preciso direccionar as caravelas para dentro mas, como eles, sem perder o pé no presente e com as âncoras bem assentes no futuro. E há um “património urgente” - é desse que trata a Música Portuguesa a Gostar dela Própria. Nós cruzamos tradição e contemporaneidade porque o nosso tempo é o tempo em que vivemos agora e fazemos isso por gosto e opção. Uxu Kalhus tiveram sempre como ponto de partida a tradição, não por saudades do passado, mas do futuro. Porque temos saudades da música que ainda não tocámos e nem ouvimos, mas sabemos que nos está entranhada na pele. 
 
Paulo Pereira - A opção de celebrar a nossa identidade sem preconceitos vem na continuidade do nosso trabalho anterior que já conta com 12 anos, mais de 600 concertos e bailes, três discos e um vídeo de um concerto ao vivo. Somos pioneiros do folk em Portugal e do folk em Português e as razões que nos motivaram quando nos juntámos pela primeira vez com o objectivo de devolver a música e o baile tradicional ás ruas são hoje ainda mais válidas. Ainda existe muito preconceito relativamente a tudo o que tenha a ver com folclore e as nossas raízes, e é esse preconceito que combatemos, gostando do nosso folclore, dos nossos tocadores tradicionais, dos nossos velhinhos mas traduzindo esse amor em sonoridades contemporâneas, datas dos tempos em que vivemos.

PR - Ao longo dos 11 temas deste disco combinam novas abordagens ao cancioneiro português e composições originais, sempre num toque festivo e camaleónico, como é habitual na banda. Sentes que foram mais ousados e determinados na procura de uma sonoridade única para este “Extravagante”?

TZ - Uxu Kalhus procuraram sempre uma sonoridade única. Somos uma banda que trabalha em colectivo, cada um dos músicos dá a sua contribuição para o produto final. O resultado geralmente excede a soma das partes. Desta vez, temos uma nova formação, novos instrumentos e quisemos aproveitar ao máximo todas as possibilidades que a técnica e a tecnologia nos oferecem. Na composição e arranjos, virámos muitas coisas ao contrário e entrámos pelos caminhos do modalismo (quase extremo em alguns temas). Combinámos instrumentos eléctricos e acústicos, que nem sempre explorámos da maneira mais convencional, com o mundo digital e objectos do quotidiano - uma velha tv, um pacote de batatas fritas e o som das mesmas a serem dilaceradas por um dos músicos fazem parte do álbum -, um destes dias ainda fazemos um passatempo para ver quem descobre onde estão. A formação estabilizada permite-nos a determinação maior nas ousadias melódicas e harmónicas e também a exploração de novas texturas sonoras.
 
PP -  A nossa estética e abordagem dependem do colectivo que trabalha as musicas. O extravagante resulta de seis vontades que se conjugam (sempre com bastante esforço para nos entendermos) num objecto único, que transcende e muito as nossas múltiplas individualidades. A banda é um espaço de liberdade extrema, e como em qualquer outro domínio, a liberdade é um exercício difícil mas extremamente compensador. Por isso, e porque não fazemos concessões ao que esperam de nos, chegamos a uma sonoridade que tem como único limite a nossa imaginação. O tempo de maturação de muitas musicas permitiu-nos também polir os arranjos até estarem de acordo com o que almejávamos. Por isso, o "extravagante" resulta também de um longo processo criativo ao longo do qual as musicas foram evoluindo através da nossa interacção com o publico. O resultado final é mesmo isso, um produto acabado em que a banda se revê. 

PR - No press release afirmam: “Extravagante milita e promove o ideal de liberdade de criação e recriação do património musical português”. Para os Uxu Kalhus, o património musical não é algo de intocável?

TZ-  Preferimos o património vivo ao património morto. Ambos fazem sentido e comportam muitos e variados riscos e benefícios. Estudar o património e fazer recriações históricas é pedagógico e importante que se faça, mas não deixa de ser uma reprodução subjectiva do que se pensa que possa ter sido. Por outro lado, a reprodução, por si só, é também um elemento estrangulador para o próprio património, impedindo que ele se recrie a si próprio, como o fez naturalmente até ao momento em que se considera que “é assim”. E vestem-se trajes e toca-se da mesma maneira que se fazia nos anos 50 ou 60 do Século passado e não se deixa entrar mais nada. Respeitamos quem honestamente faz reproduções e agradecemos esse trabalho, não só enquanto músicos. Nós preferimos dar o nosso contributo por “afecto”. Pegamos na tradição e damos-lhe o que somos agora, que é o mesmo que dar o coração. Reinventamos os temas que gostamos e compomos música original a pensar em formas populares e da tradição, com os instrumentos que temos à disposição e as limitações que temos enquanto músicos. O desafio é exceder sempre. O património não é intocável, se o fosse, deixaria de ser nosso.

PP -  Desde o início que essa é a nossa abordagem: apostar na nossa riqueza cultural única e usar e abusar desse incrível património como material de construção das nossas músicas. Somos tudo menos puristas, não fazemos recolhas, aprendemos diretamente sem intermediários e recriamos à nossa medida tudo o que absorvemos. Estarmos espalhados pelo pais, do norte ao Sul de Portugal facilita o processo de retransmissão e todos os dias encontramos musicas que queremos trabalhar ou ritmos e danças que nos servem de inspiração. O resultado é muitas vezes imprevisível, mas quase sempre dançável, e é para nos uma grande alegria ver um sala cheia de gente a dançar uma cana verde do século XXI. Estamos a reinventar o nosso cancioneiro, e isso é o que nos motiva.

PR - Algumas das canções deste disco já foram apresentadas ao vivo. Qual tem sido o “feedback” do público?

TZ - É curioso falares em canções. Nunca foi preocupação da banda fazer canções, pelo menos na forma “normal”: letra com refrão e possibilidade de redução harmónica para tocar com um instrumento e voz. Este disco tem algumas canções e ficamos contentes com isso. Apareceram e são bem vindas. Destaco aqui a participação do Daniel Catarino (Uaninauei, Bicho do Mato, O Rijo), que escreveu as letras do “Tango Manso” e da “Valsa do Opilião”. O disco tem sido apresentado ao vivo na íntegra e, até agora, estamos muito satisfeitos com as reacções do público, com o que de subjectivo isto tem. Fazemos música para nós e para o público e temos tido muita gente nos concertos. E gente que dança, bate o pé e abana a cabeça. Gostamos.

PP -  A reacção tem sido sempre positiva, e cada vez mais sentimos que chegamos a mais pessoas. Esse é sempre o objectivo da criação artística, o de chegar às pessoas. Fazê-lo sem recorrer a formulas fáceis, apostando em composições nossas e arranjos completamente radicais, é uma grande vitória, e sentimos que conseguimos chegar a qualquer tipo de publico, e todos reconhecem as nossas raízes musicais nos concertos que fazemos. Seria muito mais fácil termos apostado num folk internacional ou piscar o olho à música do mundo e assim cairmos no goto das gentes bem-pensantes e dos fazedores de opinião. Mas esse não é o caminho que escolhemos, e cada vez mais me alegro por desbravarmos o nosso próprio trilho e assim construir um legado ímpar no que à música de raiz tradicional diz respeito.

PR - ”A Saia da Carolina” e “Erva Cidreira” são dois temas revisitados neste disco. Com a entrada da Joana Margaça para a banda, impunha-se uma nova leitura para estes temas?

TZ - Uxu Kalhus não dão nenhum tema por terminado. A gravação em disco é um registo do momento. Os temas são organismos vivos e sofrem alterações à medida que os tocamos – há sempre espaço para o improviso. Com a entrada da Joana e do André, que trouxeram novos timbres à banda, impunha-se uma nova abordagem destes temas, que tivesse em conta o momento actual da banda. É um registo mais próximo daquilo que temos vindo a fazer ao vivo.

PP - Os nossos temas são evolutivos, mas o nosso trabalho aposta na continuidade. Esta foi uma forma de termos presente no 3º CD os dois trabalhos anteriores, permitindo por um lado actualizar esse repertório e ajusta-lo à formação actual e por outro lado mostramos o nosso trabalho de doze anos a novos públicos. E claro, são temas que nos continuam a surpreender, por darem origem sempre a novas ideias e novas interpretações.

PR - Numa frase apenas como caracterizarias este novo trabalho?

TZ - Música portuguesa de fusão para ouvir e bailar no sofá e no salão.
 
PP - O "extravagante" é um objecto de tele-transporte cultural do passado para o presente.

PR - Sentes de alguma forma, que para os puristas da “tradição”, este poderá ser um disco “Extravagante”? 
 
TZ -  É uma pergunta que terás de fazer aos “puristas da tradição”. Quem são?

PP - É capaz... As revoluções sempre tiveram nos conservadores os seus principais opositores. A nossa revolução é tranquila mas determinada.

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