14/01/2020

SER CASTRO | Discurso Direto


Sérgio Castro, vocalista e mentor ideológico dos Trabalhadores do Comércio e baixista e fundador dos Arte & Oficio, tem agora um heterónimo Ser Castro cujo álbum "Surge", já está disponível. "Surge" é um CD acompanhado por um livro de 32 páginas, em formato de álbum LP, com 14 canções de estilos variados, compostas ao longo de 50 anos de estrada e estúdio. Hoje em "Discurso Direto" é meu privilégio receber Sérgio Castro, figura incontornável da História da Música em Portugal.

Portugal Rebelde - Este novo disco “surge” num altura em que completas 50 anos de estúdio e de estrada. Só por si chegava este motivo para a edição deste álbum?

Ser Castro - Qualquer motivo pode ser um bom motivo para tocar, produzir e publicar música. Se a música é a essência da tua vida, fazes o que queres (e podes) por ela. Não é um gesto premeditado, é simplesmente a confluência de uma quantidade de acontecimentos, uns felizes e outros muito menos felizes, realmente tristes, que estão na génese de “Surge”. Vi, há dias, um excerto de uma entrevista minha com o Jorge Pego, a princípio dos 80s – não posso precisar – em que eu já dizia que pensava fazer um disco a solo. Digamos que esta ideia leva armazenada na base do meu crânio quase 40 anos.
“When I'm 64” é uma canção do McCartney, que há anos me ecoa na cabeça. E que se passa depois dos 64? Que há para lá deles? Chegado a eles tocará fazer balanço de uma vida? Foi o que fiz: o balanço dos 50 anos. Parece que deu positivo...! De resto antes de ter título genérico “Surge”, a pasta do computador onde o álbum estava armazenado tinha por título “Now I'm 64”.

PR - Este novo trabalho é composto por 14 canções de estilos variados, contando com a participação de alguns músicos que se cruzaram contigo em Portugal (Arte & Ofício, Stick, Trabalhadores do Comércio) e Espanha (Semen Up, Os Ressentidos, Bombeiros Voluntários e Siniestro Total). Queres falar-nos um pouco desta experiência?

Ser Castro - Na realidade, as primeiras sessões de gravação, feitas nos actuais estúdios Planta Sónica, de Vigo, conduziam a uma ideia diferente, muito mais minimalista, muito mais intimista. Quando gravei “Hugs (that we miss)” usei uma guitarra acústica, duas vezes e esse era todo o palco harmónico por detrás da voz. Só que nos pareceu, a mim e ao Pancho Suarez, que um baixo podia ficar bem para dar um pouco de peso à canção. Daí até ele próprio meter uma bateria para experimentar, aproveitando uma sessão de um cliente do estúdio, foi um passo. A ideia original era, simplesmente, gravar essa canção que falava de um acontecimento muito triste, para oferece-la aos familiares mas, de imediato, a canção tornou-se mais abrangente e abriram-se outros horizontes a nível emocional. Às tantas o McCartney tinha razão e aos 64, algo se transforma. O Pancho levou-me a sacar da gaveta uma quantidade de outras canções escritas há muitos anos, donde destaco “On A Willow Tree” ou “The Dark Hour” talvez por serem as mais antigas – a primeira de 1969 e a segunda do principio dos 70 – de quando eu era adolescente, totalmente fascinado pela música dos Beatles, Kinks, Manfred Mann, David Bowie. Mas não só. As reminiscências do Folk Americano creio que ficam também patentes em “The Story” de Fevereiro de 1973, logo após a morte da minha avó paterna. Entretanto as próprias canções começaram a “pedir” pequenos arranjos, outras soluções. Se calhar, sou eu que sou inquieto e não fico satisfeito com qualquer coisa e tendo a complicar. Primeiro foi a necessidade de introduzir as secções rítmicas. O Daniel Tércio, que agora toca com os Trabalhadores, é um jovem baterista super eficaz, ainda sem “vícios” e muito competente. Veio passar dois dias a Vigo e gravou as baterias de 5 das canções no espaço de umas 10 horas. Finalmente uma delas não se utilizou, mas tudo o resto ficou fantástico. Eu gravei os baixos mas comecei a achar que estava a perder o melhor da música: tocar com outros músicos. Então pareceu-me (nos) fazer sentido convidar mais gente para participar e, o mais lógico, é convidar amigos, pessoas com quem tocaste durante uma vida musical já extensa, gente que admiras e que, de uma forma ou de outra, influenciou a tua percepção da música e da forma de fazer música. Tive o cuidado de não os juntar, mas todos os Trabalhadores estão no álbum, quase todos os instrumentistas, ainda vivos, dos Arte & Oficio estão “a bordo”: o Fernando Nascimento, o André Sarbib, o Álvaro Azevedo, o Jorge Filipe...Outras baterias foram gravadas pelo Toli César Machado, dos GNR, que não necessita apresentações e pelo Xurxo Nuñez, que é o percussionista da banda do irmão, Carlos Nuñez, e um dos percussionistas/bateristas mais versáteis com que tive o privilégio de tocar. Há anos que procurávamos um pretexto para tocar juntos...! Ao mesmo tempo, comecei a planear fazer alguns temas “ao vivo” no estúdio. Dessa forma, com o Miguel (Cerqueira), com o Joe (Medicis) e com o João Cunha – outro baterista excepcional que eu tinha ouvido algumas vezes com o Sarbib – interpretamos o instrumental “Douro Blues”. Com músicos como o Tino dos Resentidos ou o Soto dos Siniestro, que tinham sido parte dos Bombeiros Voluntários – a banda soul Viguesa que fundámos no final dos 80 – ou dos Frangos, já nos 90, gravamos o “I'd Rather...”. E com o Cholo dos Semen Up que, depois de Frangos, esteve nos efémeros Post, recuperei essa formação para, no álbum, interpretar “I Need The Blues”, com o Pichi y o Pepe Bao, como na banda original. Da mesma forma e para dar variedade sónica e interpretativa ao álbum, pensei que outros baixistas como o Miguel Cerqueira, o Pony ou o Alberto Jorge, seriam uma aposta segura. Finalmente, com muita pena minha, o Alberto Jorge não pode participar, pois a saúde não lho permitiu. Outros músicos que me apetecia muito ter a colaborar eram o Luis Ruvina, com a sua forma única de tratar o Hammond – e lá está ele em dois dos temas: inconfundível – o Manuel de Oliveira, cuja guitarra acústica de flamenco abre o álbum com a tranquilidade que o tema pede e o Hugo Correia, desse projecto que há anos sigo, fascinado – Fadomorse – e que toca violoncelo em duas das canções. Há outros músicos que, com o avançar das gravações foram sendo convidados, para executar sopros, blues harp ou pequenas instrumentações e o álbum foi crescendo. Claro que a cereja no topo do bolo foi a oportunidade de gravar corda e trompa, num dos melhores estúdios de Londres, com um ensemble de luxo dirigido pelo maestro Robin Stchlochtermeier. O Joe Medicis escreveu o arranjo, belíssimo por certo, e o Studio 1 dos Angel Studio de Islington, acolheu a “cerimónia”.


PR - Este CD vem acompanhado por um livro de 32 páginas. Para além da música, neste projeto juntaram-se 5 pintores que contribuíram com 16 pinturas. Como é que surgiu esta ideia?

Ser Castro - Como todas as ideias, umas atrás de outras. Um álbum necessita de uma capa e uma capa deve ser sugestiva. É assim que eu vejo o assunto. Sempre me atraíram as capas dos discos de vinil. Coleccionei álbuns com apresentações deliciosas: O “Let it Be” dos Beatles, o Chicago IV (Live at Carnegie Hall), os álbuns dos Yes, dos Gentle Giant, do Frank Zappa com ou sem Mothers. Todo um universo a explorar enquanto a música soava no gira-discos. Nos Arte & Oficio tentamos faze-lo e nos Trabalhadores sempre as capas tinham uma história – se exceptuarmos o “NaBraza” de má memória que, afinal, também deu história. Mas este álbum tinha que ter uma grande capa e nada melhor que uma pintura. O Manuel “Polen” Cunha é uma grande amigo, de longa data e um pintor excepcional. Quando lhe pedi uma pintura para a capa, acedeu e eu aproveitei para abusar e propor uma pintura ilustrativa para algumas das canções, ou até para todas. No contínuo “brain storming” que se desenvolve sempre que o visito na aldeia do Gerês onde vive com a Paula Dacosta – ela também pintora – propôs-me um colectivo de 5 pintores. Os cinco pintores atiraram-se à tarefa com toda a alma que só um pintor pode ter. O Ammil (Martinho Lima), o Mutes (César Amorim), a Elisa Queiroz, o Damião Vieira e o próprio Pólen, aportaram obras absolutamente fantásticas, que ilustram de forma sublime todas e cada uma das canções. Com 14 fabulosas pinturas nas mãos mais a da capa – do Pólen – e outra que, à última hora apareceu em minha casa, das mãos do Martinho Lima – e que acabou por ser a contracapa, a Diana Castro – pois sim a minha filha – fez um trabalho de altíssima qualidade a nível de composição gráfica. Vasculhou a net, encontrou motivos e fotografias, fez fotos, modificou fotos e durante meses criou uma obra de arte que faz um enorme serviço à musica “enlatada” naquela miserável rodela de plástico que, de outra forma, qualquer incauto atiraria para o esquecimento de uma gaveta. O “Surge”, de que muito me orgulho, cada vez mais, é tudo isso: o resultado de um complot, de uma equipa de artistas que quiseram fazer obra.

PR - “Douro Blues” é um dos temas que compõe este disco. Esta é de alguma forma uma homenagem à tua cidade?

Ser Castro - Mais que à minha cidade, é uma homenagem a toda uma fatia de terra, deste Norte que amo de forma incondicional. Ao rio que espreitava “da janela do meu quarto”, como diz a canção, quando vivia no 3º andar dum edifício da rua Gomes Leal, no Porto. Ao rio que lavra pelo meio de montes pintados de ouro e verde, até chegar ao Porto e à Foz. Ao rio onde o meu pai me levava, às escondidas, para ver o último arco da Ponte da Arrábida a ser içado. Ao rio onde o velho Duque tanta gente salvou. Ao rio das cheias e da miséria, mas também do renascer de uma cidade que, hoje, é património da humanidade mas, acima de tudo é património por Portuenses que nela nasceram e que, ainda que espalhados pela diáspora, como eu, a reivindicam.

PR - Depois da edição é tua intenção levar as canções deste “Surge” aos palcos? Há já alguma data que queiras avançar?

Ser Castro - Sem dúvida, uma mão cheia de canções como estas não pode deixar de ser apresentada fora do plástico. Não vai ser fácil, num ano em que os Trabalhadores cumprem 40 anos e, alguns esperam que os comemoremos por todo o alto, agora que temos uma página de fãs, com cerca de 5.000 membros alcançados em menos de 2 semanas, que exigem a nossa atenção e actividade. Mas tenho intenção de juntar 3 ou 4 músicos, aqui na Galiza, e preparar a base para ir por aí a toca-las, convidando alguns dos que colaboraram nas gravações do álbum. Já veremos.

PR - Para terminar, que memórias guardas de 50 anos de canções?

Ser Castro - Falar de memórias de 50 anos pode chegar a ser tremendamente aborrecido, para quem não as viveu. Seria interminável. Há 50 anos eu era um adolescente que queria ser músico, criar música, contar estórias através daquilo que cantava e escrevia. Mas tinha consciência que, para isso, tinha que subir alguns degraus, porque quanto mais subisse, melhor se me ouvia. E foi o Tijolo, nas missas em Soutelo e a Síntese em Santo Tirso e, de volta ao Porto a Rocka e depois o Psico. E estava dado esse passo que me levou ao patamar que fazia falta para poder contar as minhas estórias, ou melhor para que me tivessem em conta e ouvissem: Arte & Oficio, Trabalhadores do Comércio, Stick, Semen Up, Trabalhadores outra vez, e outra vez...E agora, 50 anos depois, decidi que estava na hora de dar ouvidos aos meus amigos e fazer-lhes a vontade. E SURGE surgiu.




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