O livro Os Primeiros Anos - Correspondência José Afonso/ Rocha Pato (1962/1970), da autoria de Octávio Fonseca, um dos mais conceituados estudiosos e conhecedores da obra de José Afonso, retrata a troca de cartas havida entre José Afonso e Rocha Pato durante os primeiros anos da carreira do músico. Uma obra emocionante e privilegiada que lança luz sobre o autêntico "Big Bang" artístico de José Afonso. Uma leitura essencial para os amantes da música e da cultura portuguesa. Octávio Fonseca, é hoje meu convidado em "Discurso Direto".
Portugal Rebelde - O que é que o chamou mais a atenção na leitura que fez da correspondência entre José Afonso e Rocha Pato durante os primeiros anos da carreira do músico?
Octávio Fonseca - A primeira grande surpresa que tive ao ler as cartas foi sem dúvida perceber o papel fundamental que Rocha Pato teve no lançamento da carreira de José Afonso.
- José Afonso achava que as suas baladas não tinham importância suficiente para serem editadas em disco. Foi Rocha Pato que o convenceu a gravar.
- Durante o período em que José Afonso foi acompanhado por Rui Pato, ele foi um super agente: tratou de arranjar as editoras, os locais de gravação e o transporte dos materiais para a gravação; fez a promoção do cantor através de diversos artigos publicados em diversos jornais; percebe-se por esses artigos que ele foi o primeiro a perceber a genialidade de José Afonso e compreendeu logo, por exemplo, que José Afonso era tão grande poeta como compositor, um facto que muitos especialistas ainda hoje não perceberam; tratou de questões pessoais como certidões na Universidade de Coimbra, documentos para o divórcio da primeira mulher e até medicamentos com que José Afonso se automedicava por causa da voz.
PR - Fica claro nessa correspondência que a renovação da música popular portuguesa foi levada a cabo por uma equipa-trio que se complementou na perfeição nos papéis específicos de cada interveniente?
Octávio Fonseca - Nos anos de 1940 Fernando Lopes-Graça começou a compor as suas canções heroicas, que foram sem dúvida o primeiro ato musical expressamente assumido contra a ditadura. Essas canções foram muito importantes para a consciencialização antifascista do povo português, mas não tiveram consequências no panorama musical português ao nível da canção popular.
Foi a música de José Afonso, a partir de 1962 e principalmente 1963 ("Os Vampiros" e "Menino do Bairro Negro"), que desencadeou um movimento de criadores-cantores que mudaram completamente a face da nossa música urbana. Como nesse período ele foi acompanhado por Rui Pato e todo o trabalho de apoio foi assegurado por Rocha Pato, não restam dúvidas de que essa equipa-trio foi a responsável pela grande revolução que ocorreu na música popular portuguesa. E eu só percebi isso precisamente pela leitura das cartas.
PR - Quais foram as mais curiosas revelações, que veio a descobrir sobre o percurso do cantor e compositor entre 1962 e 1970?
Octávio Fonseca - Que José Afonso propôs a Carlos Paredes que passasse a ser acompanhado por Rui Pato, por motivos de posicionamento político de Fernando Alvim.
- Que a "Trova do Vento Que Passa" foi composta em 1964, portanto a datação de 1963 está errada.
- Que a estadia em Moçambique foi extremamente traumatizante para José Afonso, ao ponto de ao fim de dois meses só pensar em regressar. O fascismo colonialista ainda lhe repugnou mais que o da metrópole.
- Que na Beira (Moçambique) conseguiu dobrar a vontade do censor local e levar à cena a peça A exceção e a regra, de Bertolt Brecht, sem quaisquer cortes.
- Que foi convidado para um festival internacional em que participariam também Bob Dylan e Joan Baez.
- Que gravou "Canta Camarada" e "Menina dos Olhos Tristes" num disco de pequeno formato para não prejudicar a comercialização do álbum Contos velhos, rumos novos e não deixar de intervir com canções de conteúdo político explícito.
- Que as reações em torno de um concerto no Barreiro (11/11/1967) provam à evidência que o grande problema para a ditadura, em termos de música de intervenção, eram José Afonso e a canção "Os Vampiros".
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