“Rasgar” é o título do novo trabalho de Júlio Pereira, (25º) incluído num livro com 260 páginas ilustradas, em formato 19x19cm, evocativo dos antigos EPs de vinil. Ao longo das páginas do livro podemos inteirarmo-nos da prática do cavaquinho, desde a atualidade até informação mais remota do instrumento, passando pelos momentos em que se cruza com o próprio autor numa historiografia inédita da trajetória do músico, enquanto executante, compositor e promotor do cavaquinho. Hoje em "Discurso Direto" é meu convidado Júlio Pereira.
Portugal Rebelde - “Rasgar” é o título deste livro/disco. Este rasgar, vai muito para além da técnica
de fazer deslizar os dedos da mão direita sobre as quatro cordas do cavaquinho?
Júlio Pereira - Rasgar é nome de uma técnica que utilizo no cavaquinho tipo minhoto desde que toco
este instrumento. O que este disco contém – e fugindo ao critério, como compositor,
que usei noutros discos – foi uma preocupação clara de compor para cavaquinho
rasgado a pensar nos outros. Contribuir para um reportório que futuramente seja útil a
quem queira e goste de tocar cavaquinho.
PR - Ao longo das páginas do livro podemos inteirarmo-nos da prática do Cavaquinho,
desde a atualidade até informação mais remota do instrumento. Este estudo é
essencial para o conhecimento atualizado do cavaquinho?
Júlio Pereira - Este estudo é essencialmente a atualização da história (ou histórias) que até hoje
conhecíamos. Baseado numa cronologia de acontecimentos – fotos datadas, rótulos de
cavaquinhos (que permite dar a conhecer construtores, datas e lugares), o paralelismo
da produção e prática no continente e nas ilhas, a influência negativa do Estado Novo
na prática dos instrumentos musicais regionais (de que o cavaquinho também foi
vítima), a fabricação do cavaquinho nas importantes cidades do Funchal, Braga, Porto,
Coimbra e Lisboa – sendo que nesta, existiram mais que 20 violeiros que construíam
cavaquinhos! Toda esta informação narrada e documentada por Nuno Cristo faz-nos
entender, pela primeira vez, e poder observar as várias versões que o cavaquinho foi
tendo ao longo do tempo.
PR - O livro é editado numa versão bilingue, em português e em inglês. Esta é também
uma aposta na divulgação deste instrumento junto da comunidade internacional?
Júlio Pereira - Foi sempre desde que fiz discos com o cavaquinho. Sempre procurei meios de
documentar este instrumento. E à medida que vou tendo um maior conhecimento
sobre ele através dos estudos que paralelamente vão sendo publicados (sobretudo na
última década), mais tenho a noção que a história de vida desta tradição continuada
de construir e tocar cavaquinho, mais cedo ou mais tarde será internacionalizada.
PR - O álbum conta com alguns temas especificamente compostos para tocadores de
cavaquinho, rasga, igualmente os mares da lusofonia, e conta com a colaboração das
vozes da brasileira Luanda Cozetti no tema “Boda Atlântica”, que navega algures entre
o Marão e o Sertão e da Moçambicana Selma Uamusse, na belíssima “Terra d'Água”.
Queres falar-nos um pouco destes contributos?
De facto, a lusofonia – a “ritmofonia” – sempre estiveram presentes nos meus discos.
José Afonso e Fausto foram os primeiros músicos portugueses com quem trabalhei que
também tinham uma “alma preta”! Mas para uma experiência mais vivida e completa
nada como tocar com africanos! E aqui tenho de referir os Timbila Muzimba (de
Moçambique) com quem fiz (em 2004) uma tourneé pelo país promovida pelo José Rui
da ACERT.
Neste disco convidei a Selma Uamusse com quem tive há pouco tempo em Tondela,
uma surpreendente e belíssima experiência em palco. Por outro lado, e dado que
tinha composto uma música que tem que ver com o Brasil – aliás, que tem que ver
com as novas relações humanas que em Portugal vão surgindo face à co-habitação
com brasileiros, não haveria melhor escolha que convidar a Luanda Cozetti.
PR - O reconhecimento da prática do cavaquinho em Portugal, fica-se muito a
dever ao trabalho da Associação Cultural Museu Cavaquinho?
Júlio Pereira - Desde 2013 que o objetivo da AC Museu Cavaquinho é documentar, preservar e
promover a história e a prática do cavaquinho em Portugal. E assim caminhámos,
publicando estudos, fazendo inventários de todo o universo que gira à volta deste
instrumento, editando livros, discos e estudos, até sermos a entidade responsável pelo
pedido de registo no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial que
proporcionou o facto de a construção do cavaquinho ser hoje Património.
PR - Agora que a construção do cavaquinho é Património Nacional, o processo para a
candidatura da prática do cavaquinho à Lista Representativa do Património Cultural
Imaterial da Humanidade é o grande objetivo da Associação Cultural Museu do
Cavaquinho?
Júlio Pereira - Sim é. Faz parte de uma das missões desta Associação. A maioria dos portugueses não
sabe que, de algum modo, estamos em dívida com vários países do mundo. E
atenção… é uma enorme fatia do mundo! Países que têm também a prática das
chamadas “pequenas violas” como o cavaquinho, o ukulele, o keroncong – e que até
hoje insistem em atribuir a sua origem portuguesa. Já é hora de agradecermos a
gentileza. Como?
Lembrando as palavras sábias do nosso eterno Eduardo Lourenço: “… Num País em
que o povo parece continuar a esconder dele próprio a situação de sujeito histórico…”
resta perder o medo e mostrar ao mundo o que somos, o que temos e o que fazemos
com o nosso cavaquinho.
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