22/03/2010

PEDRO ABRUNHOSA | "Longe"

"Prepare-se um farnel, sem esquecer as bebidas. Encontre-se um lugar confortável e, por favor, não se esqueçam de apertar os cintos de segurança – é que vamos para “Longe”.
Só mesmo os cépticos profissionais e os defuntos de espírito chegarão ao fim da escuta desta dúzia de canções no mesmo “lugar”.
Por eles, como nos westerns, não há mais nada a fazer – a não ser o tiro de misericórdia. E Pedro Abrunhosa, sendo vincado e íntegro como poucos, nunca foi de perseguir unanimidades, graças a Deus.
Agora, em 2010, depois dos milhares de espectáculos e de discos que se cruzam num currículo singular, parece disposto a algo que se aproxima de um recomeço radical.
Precisou de juntar os actos à predisposição de não se acomodar. Mudou de companhias, da equipa técnica aos parceiros musicais. Mudou os nomes – entram em cena os Comité Caviar.
E, sem medos nem preconceitos, mudou de som. Ou seja: mesmo antes de começar a ser ouvido, este já é um disco de estrada, de caminhos, de aventuras temerárias, de novas histórias.
Pedro Abrunhosa é um homem entusiasmado com o novo ciclo. Fala da fuga à “apropriação da sua personalidade artística”.
Usa palavras como “visceral”, “orgânico”, “divertimento” e, sobre todas as outras, “paixão”, enquanto se ouvem guitarras que não se lhe conheciam e enquanto o velho órgão Hammond (dos anos 50, nem menos) vai marcando as canções.
Continua a referir os seus nomes de refúgio – Miles Davis, John Coltrane, Mahalia Jackson, Frank Zappa – e a não renegar a costela europeia – Georges Brassens, Serge Gainsbourg, José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto – mas deixa escorrer os valores acrescentados que, se quisermos chegar a tal preciosismo, lhe servem de padrinhos para ir “Longe”: Bob Dylan, Leonard Cohen, Johnny Cash, Bruce Springsteen, Tom Petty, Bob Seger e John Mellencamp, sem nunca esquecer Tom Waits.
Fala no som de T-Bone Burnett, que poderia ter sido o produtor do disco. Não foi preciso: o próprio Pedro e João Bessa – vão fixando o nome, s.f.f. – deram conta do recado.
De tal forma que “Longe” é fresco e revigorante, sem perder corpo, energia e sabores perenes.Vamos por partes: não se trata de renegar nada do que foi ficando para trás.
Mau seria, diante de um percurso sem faltas como o de Abrunhosa, navegador de novos rumos. O que está em causa é o sacudir de rotinas: o autor, em diferentes etapas da conversa, há-de chamar-lhe “ruptura”, até dos compromissos com a indústria, de referir um regresso “da inocência” dos 16 anos (e foi aí que se tornou profissional), de “manter o sonho vivo”.
Perguntam-se os mais cuidadosos: mas perdeu-se o provocador político, esvaiu-se o solitário noctívago e apaixonado? Nada disso. Insiste-se: tal como perdoar não implica esquecer, mudar não significa renegar nada. Simplesmente: “Não me posso contentar com a história que já contei”.
E, em boa verdade, essa é outro dos valores acrescentados com os novos horizontes de “Longe”: Pedro passa a ser, de pleno direito e plenos poderes, um storyteller, outra vez à americana, sem inculcar a moral que deixa à escolha de quem ouve e não tem dificuldades em identificar-se com as frases, os cenários e os enredos dos convocados para as canções.
Tome-se, como mero exemplo, a canção de “Longe” que as rádios toca(ra)m em avanço e que rende um título quase profético para todo o disco: “Fazer O Que Ainda Não Foi Feito”. É uma canção de amor (“Sei que me vês/Quando os teus olhos me ignoram,/Quando por dentro eu sei que choram./Sabes de mim,/Eu sou aquele que se esconde,/Sabe de ti sem saber onde (…) ou um apelo à transcendência e à urgência (“Eu sou mais do que te invento/Tu és um mundo com mundos por dentro/E temos tanto p’ra contar//Vem esta noite,/Fomos tão longe a vida toda,/ Somos um beijo que demora,/Porque amanhã é sempre tarde demais”)?
Pedro sorri e isso significa que está dada a resposta: é mais um dos mistérios que vai levar “Longe” a discussão. Musicalmente, a matéria-prima não deixa grandes dúvidas: um mid tempo de tempero rock, bem sublinhado pelas guitarras (eléctrica ou acústica), abrilhantado pelo som inconfundível do Hammond e por pormenores de requinte (piano, percussão).
Afina pela estética do álbum em que, como o autor reconhece, o mais árduo dos trabalhos foi a eliminação do supérfluo. Como musicólogo que (também) é, Pedro Abrunhosa cita o famoso “wall of sound”, criação do mítico produtor Phil Spector, aqui adaptado à circunstância de um músico que se reinventa.
E lá vamos nós exercitar o saudável contraditório. Nunca Abrunhosa perde a noção de que este disco será o seu alicerce e o seu andar-modelo quando subir ao palco, para se mostrar (de) novo – lá está “Eu Sou O Poder”, cuja dimensão cénica é perfeitamente sensível e assumida.
Há o caso do tema de fecho, “Capitão da Areia”, entre a cantiga de embalar e a caixinha de música, aquele momento em que o homem se cansa de ter crescido e aceita o amparo dos super-heróis.
Nos antípodas, mora a canção de abertura, “Rei do Bairro Alto”, um retrato crítico mas que, tanto nos cruzarmos com ele, não chega a ser uma caricatura: “O meu casaco de pele/O meu Porsche vermelho,/Se eu puxar de papel/Já não me sinto tão velho./Hum, estou bem!/Se os outros vão eu vou também,/Gosto que me vejam/O decote em janela, Aprendo esta pose/Já tenho um pé na novela”.
Há mais sátira, em “Ai, Ai, Caramba, Já Fui!”, a que os metais latinizados emprestam o tom dançante que se imagina também especialmente recomendado para os concertos.
Quem procurar a balada, pode ficar-se por “Não Desistas de Mim”, reflexo do despojamento instrumental, argumento que não deixa lugar a equívocos: “A porta fechou-se contigo,/Levaste na noite o meu chão,/E agora neste quarto vazio/Não sei que outras sombras virão (…) /Há um perfume que ficou na escada,/E na TV o teu canal está aberto,/Desenhos de corpos na cama fechada,/Sai um mapa de um passado deserto”.
O resto, tudo o resto, é a artéria principal, o nervo, a essência que faz de “Longe” um disco de proximidade. O piano de Pedro Abrunhosa, o órgão e os teclados de Cláudio Souto, as guitarras de Marco Nunes e Paulo Praça, o baixo de Miguel Barros, a bateria e a percussão de Pedro Martins, os coros (muito “doo-wop”, acompanhando a estética rigorosa de todo o álbum) de Patrícia Antunes e Patrícia Silveira juntam-se, numa harmonia trabalhada para criar confortos mútuos e inquietações múltiplas, em canções que parecem saídas do fundo dos tempos mas são o espelho destes dias de Abrunhosa que, já agora, se afirma – ou confirma – como intérprete.
Que querem que vos diga mais? É um disco de rock, sem complementos de circunstância e sem leis de incompatibilidades – daí que não sejam corpos estranhos os metais e as cordas de ocasião, a voz feminina de Cristina Massena (lá chegaremos, em futuro que se espera próximo), o rap e o scratch.
Mas esses são os ramos que, aqui ou ali, emergem de um sólido tronco central, responsável por canções do mais fino recorte (não fossem originais de Abrunhosa e apetecia descrevê-las como tendo “origem nas melhores proveniências”): “Pode O Céu Ser Tão Longe”, “Se Houver Um Anjo da Guarda”, a já citada “Fazer O Que Ainda Não Foi Feito”, “Durante Toda A Noite”, “Já Não Há Por Onde Fugir” e “Enquanto Há Estrada” (outro título de encaixe perfeito) entram directamente para a antologia do melhor Abrunhosa, descomprometido, enérgico, agitador, observador, quase sempre superior.
Com vossa licença, deixo para o fim a minha favorita particular. Chama-se “Entre A Espada e A Parede”. Sozinha, já seria um manifesto: a simplicidade de um estado de alma bastante duvidoso é traduzido na perfeição por uma cadência tão avassaladora quanto despida de truques, por uma simplicidade tão orgulhosa que nem se incomoda por vir debruada a suaves figuras de estilo.
É um hino. É um mimo. E vale como a certeza absoluta de que, embora estas canções pareçam ter saído do fundo dos tempos, há aqui uma urgência que tem tudo a ver com um percurso pessoal (inquieto, sublinho) e uma caminhada colectiva em que cabemos todos, que nem temos ocasião para estranhar como o novo Abrunhosa parece ter quilómetros de alma e apontar a horizontes que, se calhar, dávamos como perdidos.
Por outras palavras, se vos disserem que devagar se vai ao “Longe”, desconfiem: neste caso, a demora equivale à perda. É para já." (Universal Music)
Alinhamento:
1. Rei do Bairro Alto
2. Entre a espada e a parede
3. Pode o céu ser tão longe
4. Se houver um anjo da guarda
5. Fazer o que ainda não foi feito
6. Durante toda a noite
7. Não desistas de mim
8. Ai, Ai, caramba! já fui...
9. Já não há por onde fugir
10. Eu sou o poder
11. Enquanto há estrada
12. Capitão da areia

1 comentário:

Anónimo disse...

Se houver um anjo da guarda é sem dúvida a melhor de todas as divinas canções deste cd.
parabéns

/>