17/02/2014

UM CORPO ESTRANHO | "De Não Ter Tempo"


A música de Um Corpo Estranho não é puxada a fórceps, chega desapressadamente, depois de preparado o seu ambiente.

Há um Oeste a latejar em "De Não Ter Tempo", um Oeste que é fruto possível de uma sonoridade em que vibram cordas de ukulele e banjo. Mas um Oeste que confunde as coordenadas. Evoca qualquer coisa da lata de feijões aquecida uma lareira, pistola repousada no coldre de um caubói mítico norte-americano, mas não chega com uma pompa morriconiana inventada à distância. Um Corpo Estranho não é épico. É telúrico até mais não.

Até porque "De Não Ter Tempo" vive de uma escala local: a língua inglesa nunca consegue entrar. É estripada das canções, mantida ao longe, impedida de se aproximar de uma sonoridade que lhe seria, afinal, estranha. Porque tudo aquilo que há de sedutoramente universal nas canções de Um Corpo Estranho é depois amplificado por uma impagável ressonância familiar. 

A palavra, com a maturidade, deixa-se de facilitismos, quer buscar sentidos e simbolismos, quer a densidade da poesia, já não quer rimar “why” com “cry”, “night” com “light”, “danger” com “stranger”.

As palavras, no entanto, recusam os processos da tragédia grega, não querem começar pelo início e terminar num fim discernível, dispensam a apresentação de uma moral numa bandeja pronta a usar em qualquer minudência quotidiana. 

É precisamente por isso que João e Pedro se dizem “contadores de anti-estórias”. Nas letras, querem a liberdade da poesia, arriscam um sentido catártico, mas sobretudo acreditam que chegado o verso inaugural por inspiração mais ou menos divina, todos os outros tratam de se aprumar e preparam a sua convocatória inevitável para o poema.

Portugal passeia-se por aqui e não apenas na simples adopção do português como língua a habitar cada verso. Há todo um imaginário que transborda o país, uma insinuação constante da cartilha fadista, há uma permeabilidade ininterrupta aos resquícios da música tradicional, há o acordeão de Celina da Piedade, a versão de “Vem (Além de Toda a Solidão)” caucionada por Pedro Ayres Magalhães, e a afirmação derradeira de uma latinidade que não descansa.

"De Não Ter Tempo" significa também esse recolhimento. Depois do deslumbramento com o mundo na adolescência, saber virar o olhar para dentro e perceber que não há verdade mais verdadeira do que essoutro mundo, próximo, ao alcance da mão, que conhecemos pela frente e pelo avesso, que está incrustado nos dias e que, ainda assim, se revela sempre como algo maior e explicável.

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