Aprendemos desde pequenos a suspeitar do estranho. A não lhe abrir a porta, a não aceitar as suas ofertas, a abordar com cautela e suspeição tudo aquilo que não faça parte de um mundo conhecido e, por isso mesmo, seguro. Mas antes da familiaridade há sempre estranheza, inevitável no contacto com aquilo que nos é novo. Na música de João Mota e Pedro Franco, o duo Um Corpo Estranho, a estranheza apensa à designação é coisa de uma fugacidade momentânea. Não se juntaram por acaso – escolheram-se. Tiveram suficientes bandas, passaram por experiências musicais q.b. para que, no momento de, qual ritual de acasalamento, seleccionarem o parceiro ideal com o saber acumulado responsável. Agora, aos trinta e picos anos, já não é tempo de falsas partidas, bluffs ou tiros de pólvora seca. Com uma mescla de profundezas blues, acutilância pop e um devir do fado terem posto pela primeira vez a cabeça de fora em meados de 2012: a edição de um EP homónimo. Agora, há um Oeste a latejar em "De Não Ter Tempo", um Oeste que é fruto possível de uma sonoridade em que vibram cordas de ukulele e banjo. Mas um Oeste que confunde as coordenadas. Evoca qualquer coisa da lata de feijões aquecida uma lareira, pistola repousada no coldre de um caubói mítico norte-americano, mas não chega com uma pompa morriconiana inventada à distância. Um Corpo Estranho não é épico. É telúrico até mais não.
Portugal Rebelde - “A música de Um Corpo Estranho não é puxada a fórceps, chega desapressadamente, depois de preparado o seu ambiente”, diziam no press release do disco “De Não Ter tempo”. Foi em verdadeiro “recolhimento” que preparam este álbum?
Um Corpo Estranho - Foi um trabalho que levou o seu tempo. Não tivemos pressão de prazos, apenas a nossa própria pressão. Foi um álbum cozinhado em lume brando, que passou sem duvida por esse recolhimento a fim de o deixar maturar e ganhar forma. O nome deve-se em grande parte a essa ironia, porque no fundo existia uma luta interna entre o tempo que lhe quisemos dar e o nosso relógio interno, tal como o crocodilo Tic-tac de Peter-Pan, que simboliza o tempo que nos persegue e nos pressiona a crescer.
PR - “De Não Ter tempo” respira portugalidade e não apenas na simples adopção do português como língua. Há todo um imaginário que transborda o país. É tudo isto que maioritariamente gostam de cantar os Um Corpo Estranho?
Um Corpo Estranho - Não nos preocupamos muito se estamos a fazer música que traduza Portugal, mas é impossível fugir a essa portugalidade. É algo que está em nós, porque nascemos cá e temos o espólio do país no sangue. Talvez seja essa a maior influencia, mais do que o artista A ou B. No fundo, penso que os Um Corpo Estranho gostam de cantar o mundo inteiro, o mundo interior e o mundo físico, sempre vivido através dos olhos de um português em viagem.
PR - De que é que nos falam as canções “De Não Ter Tempo”?
Um Corpo Estranho - “De não ter tempo” tem lugar em vários cenários, que partem de experiências pessoais e depois são romantizados. São impressões que roubamos á realidade e extrapolamo-las para um plano fictício. Não sei se algum artista sabe exatamente do que fala a sua obra. Pelo menos, não na totalidade. Porque ela tende a ganhar uma vida própria, que deixa de lhe pertencer. Fazer um disco é um pouco como estar apaixonado, sente-se mais do que se pensa e semeia-se algo que não podemos adivinhar no que vai brotar. No fundo é um estado de embriaguez constante.
PR - Neste disco prestam um tributo aos Madredeus, com a recriação de “Vem (Além de Toda a Solidão)”. Há alguma razão especial para a escolha deste tema?
Um Corpo Estranho - Começámos o projeto apenas com temas originais, o que era um problema, porque tínhamos pouco tempo de concerto e ninguém nos conhecia. Este tema veio ao nosso encontro para reduzir essa distancia com o publico, no fundo para abrir as portas para as outras músicas. Acabou por ter tanta importância como todos os outros, acabando até por vir a ser o mote estético do projeto. Além da homenagem que fazemos a Madredeus, projeto que faz parte do nosso imaginário de longa data, é um tema que reflete muito do universo de Um Corpo Estranho.
PR - “Auto Coação” foi o single de avanço deste trabalho. Este tema é a melhor porta de entrada para descobrir as canções “De Não Ter tempo”?
Um Corpo Estranho - Todos os temas são uma porta de entrada para o disco. Um single não reflete, necessariamente, o resto do trabalho. De qualquer forma é um tema que faz parte dos primórdios do projeto e talvez o que se assumiu com mais imediatismo. É um tema que remete para uma luta interior, e a forma de ultrapassar os obstáculos que por vezes impomos a nós próprios. Essa catarse está presente noutros temas do álbum, talvez apenas de uma forma mais direta neste tema.
PR - Para terminar, numa frase apenas – como caracterizarias “De Não Ter Tempo”?
Um Corpo Estranho - De Não Ter Tempo é um álbum de crescimento, de confronto entre o pessimismo céptico e o deslumbramento infantil pela vida. Ou pode ser outra coisa...
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