27/01/2017

LULA PENA | Discurso Direto


No dia em que "Archivo Pittoresco"chega às lojas, Lula Pena revela na primeira pessoa as canções deste novo disco.

Poema/Poème

Um texto meu, em francês, em que o som, o significado e a grafia das palavras se combinam para sugerir diversas perspetivas semânticas, outras possibilidades interpretativas. Seguido de um poema cheio de evidências surpreendentes do surrealista belga Louis Scutenaire, “Je ne suis pas d’une grande pauvreté”. São ambos musicados por mim.

Pesadelo da história

Uma música que fiz a partir de versos de Ronaldo Augusto, um poeta brasileiro contemporâneo, que remetem para a questão da herança africana. Diz: “O negro que sou, inclusive em alma”, dirigindo-se às diversas escravaturas a que nos submetemos, incluindo a de nós mesmos.

Ojos, si quereis vivir

Uma canção que remonta ao século XVII, ou mesmo antes, de autor ou autores anónimos, aqui numa melodia original, que nos diz basicamente que o mundo dos sentidos não esgota o sentido que há no mundo, com versos como “Que entra por los ojos/ Por ellos ha de salir” e “Cielo, si quereis oyr/ Abra la oreja a mi duelo/ Que Amor, que oye del cielo/ En ello ha de salir”.

Las penas

Apesar de surgirem indexadas em CD, a minha intenção é que as canções de “Archivo Pittoresco” se ouçam como uma só, e vejo a mexicana ‘Las penas’ como um prolongamento da europeia "Ojos, si quereis vivir". Adapto aqui uma gravação antiga, feita sob a égide de Thomas Edison nos anos 20 do século passado. De autores anónimos, foi lançada para o mercado fonográfico como ‘Que partes el alma’ e, de certo modo, trata da submissão total aos sentidos. Ou seja, no disco, a noção mais corpórea do desejo surge imediatamente após uma canção consagrada às coisas do espírito.

Rose

Uma canção do compositor e cantor baiano Ederaldo Gentil, falecido em 2012. Rose é Rosa, o nome de uma pessoa mas também o de uma flor, claro, e, mantendo-nos atentos à fonética do tema, aquele “O que é que houve com Rose, hein?” transforma-se facilmente em “o que é que ouve com rose” ou, melhor ainda, em “o que é que ouve com/ ouse”. Aí, por via da transmutação, remete para o atrevimento, para a ação, reforçando um significado ambíguo.

Ausencia

Um tema de Violeta Parra, grande compositora, intérprete e vulto da etnomusicologia chilena, artífice fundamental do reavivar e reinventar de modos folclóricos latino-americanos. A ausência é um paradoxo. A nossa mente e as nossas memórias nunca nos permitem estarmos completamente ausentes. Quanto atuo tento estar ao mesmo tempo presente e ausente. Preferia não estar em palco, mas estou. Este processo obriga-me a pensar e a expressar-me em tempo real, a reagir ao momento. E aí, sim, estou e não estou presa a cada instante. E é surpreendente e maravilhoso de cada vez.

Pes mou mia lexi

Uma canção da autoria de Manos Hatzidakis, ilustre compositor grego, estreada em 1961 no filme “Alloimono stous neous”. Quer dizer: diz-me a palavra – ou, talvez, dai-me a palavra. Adotei-a há uns anos, quando a Grécia foi o primeiro país da União Europeia a sofrer os efeitos da crise económica global, chegando ao colapso financeiro. De certa forma quis relembrar que lexicamente somos todos gregos.

A diosa (No potho reposare)

Um tradicional sardenho sobre o amor vivido à distância, no dialeto local, adaptado pelo compositor Giuseppe Rachel a partir de um poema de Salvatore Sini. Toquei na Sardenha há muitos anos e ouvi-o a ser cantado. Ficou-me na cabeça durante duas décadas, ainda que só me recordasse de um par de versos seus. Agora, senti que tinha de ir em busca do seu significado. Apropriadamente começa assim: não posso repousar.

O ouro e a madeira

outra vez Ederaldo Gentil. A sua letra diz que a “Ostra nasce do lodo/ gerando pérolas finas”, puro código alquímico. Além de que possui um elemento de reducionismo, em que se toma o todo pela parte, que, entre muitas outras, remete para as questões de atuação e alinhamento a que já aludi: “Não queria ser caminho/ porém o atalho// Muito menos ser o campo/ me bastava o grão/ Não queria ser a vida/ porém o momento/ Muito menos ser concerto/ apenas a canção”.

Cantiga de amigo

um tema de Elomar, cantor e compositor brasileiro que, de modo orgânico, transferiu o romanceiro medieval para o sertão. Trata do amor não correspondido e é uma referência à tradição galaico-portuguesa, do tempo dos trovadores. O amor é livre e selvagem mas também místico e simbólico e, no fundo, por intermédio desta canção, remeto para os diferentes níveis em que ele se manifesta.

Deus é grande

Allahu Akbar, etc. Musiquei estes versos de Bénédicte Houart, poeta portuguesa contemporânea nascida na Bélgica, originalmente publicados num livro seu chamado “Reconhecimento”. Não é tanto acerca da religião no sentido institucional quanto no etimológico, que fala da junção do prefixo latino re com ligare, que significa unir, atar, etc., levando ao “voltar a ligar”. É Deus enquanto plataforma, rede. Contudo, nesta perspetiva, não crer pode revelar-se a atitude mais religiosa na medida em que nos leva a procurar por nós próprios todo o tipo de ligações entre as coisas.

Breviário

ou um resumo, um sumário. É sobre a “vinda do grande barco” a Breves, na ilha de Marajó, foz do Amazonas, mas igualmente acerca da chegada a terra de quem viaja por um corpo de água. O que se passa realmente nessa membrana entre os elementos? O que se altera? São palavras da destacada ensaísta e professora brasileira Jerusa Pires Ferreira musicadas por mim. Jerusa foi desafiada a redigir um poema com base numa fotografia da vila tirada de um barco, com a estátua de Nossa Senhora de Santa Ana em primeiro plano, e daí nasceu “Breviário”, a sua forma de conferir outra vida a esse retrato.

Come wander with me

Este tema vem diretamente da “Twilight Zone”. É, aliás, o título de um episódio da série, emitido em 1964, em que surge pela voz de Bonnie Beecher. Foi escrito por Anthony Wilson e musicado por Jeff Alexander. Costuma ser o princípio dos meus espetáculos, como que atraindo o público para que siga comigo pelas paisagens errantes das canções, atravessando mundos. Agora, no disco, coloquei-a no fim, quiçá intencionalmente, como quem convida quem o escuta a ir a um concerto meu e, com sorte, passar pela experiência de saltar de dimensão e comungar desse ritual com outra propriedade.

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