21/08/2017

ARIEL NINAS | Discurso Direto

Foto: João Pereira da Silva

Dois músicos, um galego e um português, lançando mão de diversos instrumentos (sanfona, guitarra, braguesa, guitalele, harmónio, harmónica, percussões), cantam e tocam canções de cego. A sanfona, instrumento de origem medieval e companheira certa dos cegos cantores, ocupa um papel central neste concerto que junta canções galegas e portuguesas recentemente gravadas no disco “Cantos de cego da Galiza e Portugal”, editado por aCentral Folque da Galiza. “Cantos de cego da Galiza e Portugal” é um concerto temático sobre uma personagem singular na cultura musical ibérica: o cego, que desde a Idade Média povoava o universo sonoro das feiras e romarias, contando e cantando histórias de crimes, romances e feitos históricos. No próximo dia 26 de Agosto, Ariel Ninas & César Prata apresentam em Peso da Régua as canções deste disco. Hoje em "Discurso Direto" recebemos Ariel Ninas.

Portugal Rebelde - Antes de mais, como é que surgiu a ideia para gravar os “Cantos de Cego da Galiza e de Portugal”?

Ariel Ninas - Pois surgiu do interesse de trabalhar um com o outro sobre um repertório comum galego-português mas com sotaque diferente. A coincidência deu-se durante o Encontro de Tocadores de Caminha no 2015 que fomos convidados a ensinar em uma oficina de “Cantos de cego e sanfona”, o César como formador português e eu como formador galego. Não nos conhecíamos mas durante esses dias ficou claro que tínhamos interesses e jeitos de trabalho parecidos. Combinamos em trabalhar a distancia, enviar-nos canções tradicionais para reformular e adaptar aos nossos estilos, trilhas para completar os arranjos,... Quando estivemos prontos eu fui a Trancoso onde ele mora e  tem estúdio, e lá gravamos todo o disco durante os dias frios do entrudo de 2016.

PR - Afinal, que canções são estas?

Ariel Ninas - São canções tiradas da tradição. Algumas recolhidas da transmissão direta dos informantes principalmente as portuguesas por César ou o Américo Rodrigues que trabalharam na zona de Guarda, e de cancioneiros e gravações antigas que eu compilei da parte da Galiza. Estas canções que nós cantamos são uma representação dos géneros que os ceguinhos e ceguinhas cantavam nesses lugares onde havia confluência de público e que este gostava (e pagava) de ouvir: crimes, romances, historias pitorescas, casamentos, ...Os arranjos que nós fizemos foram simples, incidindo nas músicas modais de bordão ou nas progressões harmónicas muito claras e sem grandes surpresas respeitando as melodias originais populares e por causa disso, boas para cantar e conectar com o público geral.

PR - Podemos dizer que este “Canto de Cegos da Galiza e de Portugal” é uma viagem pelo universo da transmissão oral e musical de “notícias” antes da massificação dos meios de comunicação?

Ariel Ninas - Efectivamente. Estas pessoas cegas são músicos populares profissionais que cantavam o que o público queria ouvir. Algumas cantigas bem conhecidas pela sua audiência ou algumas novidades que eles levavam, geralmente os casos de crimes e assassinatos, contados de um jeito que comove-se a quem escuta-se para assim ter mais sucesso (o que se traduzia em uma maior bolsa ao final do dia). Ao ser músicos itinerantes, foram muito importantes na conformação de um repertório comum levando cantigas de um lugar a outro em um tempo em que a mobilidade das comunidades era reduzida. É assim que encontramos os mesmos textos nas Beiras, Galiza ou Castela. E também muito importante para nós ter conservado algumas destas canções muito antigas. Por exemplo, a faixa “Santa Helena” que incluímos no disco recolhida ao violinista cego Florencio dos Vilares (A Fonsagrada, Lugo, Galiza) no ano 1979 faz parte do romanceiro velho hispânico e está também representado no romanceiro sefardí. Tendo em conta que os judeus foram expulsos da Península Ibérica a finais do século XV, isto quer dizer que esta cantiga  canta-se mais menos há 600 anos nas montanhas da Galiza. O ceguinho aliás é uma personagem universal, tenho-os visto nas ruas ao redor do mercado do Bolhão e também há em lugares distantes coma Mali, Tibet, leste da China,... Desde Homero, até Stevie Wonder, Sebastião Antunes e Dona Rosa, as pessoas que não vêem com os seus olhos, sempre nos mostraram a realidade de um jeito peculiar e muito interessante neste mundo contemporâneo da omnipresença e “ditadura” do visual. Os textos que cantamos podem-se ler na web da nossa editora: http://artistas.folque.com/cantos-de-cego/letras-do-disco-ccgp/.

PR - No tema “Desgarrada” pode ouvir-se: “Vieste lá da Galiza / Com vontade de cantar / Trouxeste uma sanfona / E romances de encantar. Como não há uma feira / Podemos, então, gravar / Esta é uma maneira / Da memória conservar.” É mesmo assim?

Ariel Ninas - Foi mesmo assim. Esta é a quadra que abre o disco em uma canção escrita pelo César que tenta contextualizar o nosso trabalho no século XXI. O texto também diz assim “[...] Eu venho lá de longe / Quatro horas de caminho (o tempo que demora pela autoestrada ir da minha casa em Santiago de Compostela e Trancoso) / Para cantar e tocar / Os romances do ceguinho”. As cantigas deste projeto são tradicionais excepto dois textos, este canto à desgarrada que abre o disco, e o que o fecha que é um texto original meu sobre um crime acontecido há uns três anos muito mediático na Galiza e em Espanha e pretende atualizar as temáticas de este tipo de género de “crimes e assassinatos” que cantavam os cegos e cegas.

PR - A sanfona foi desde sempre um instrumento privilegiado pelos cegos?

Ariel Ninas - Nem sempre. Quando nasce o instrumento, é na elite social das catedrais e mosteiros no século XI (“symphonia” ou “organistrum”) para o acompanhamento aos primeiros cantos polifónicos europeus. Um século depois, os jograis das cantigas medievais provençais e galego-portuguesas também a usaram (vejam as magníficas miniaturas do Cancioneiro das Cantigas de Santa María de Afonso X). Há um documento do século XIV na França que já fala de um ceguinho sanfonista nómada que andava os caminhos para cantar as canções em distintas vilas. Estes personagens são uma evolução daqueles jograis medievais que os senhores feudais já não mantinham e tiveram que buscar o seu sustento económico ganhando a vida e “vendendo” a sua arte em feiras e romarias e que transmitiam oralmente. A partir do século XVIII também vendiam os folhetos e pregos de cordel onde estavam escritas as suas canções (vidas de santos, crimes, feitos históricos,...). Eles não só tocavam sanfona mas também outros instrumentos que lhes permitissem cantar. Estes músicos pervaleceram na Península Ibérica até começos do século XX quando morrem os seus últimos tocadores (no sul da Galiza e norte de Portugal) e os primeiros folcloristas galegos registam e resgatam da perda (Perfecto Feijóo e Faustino Santalices). Mas obviamente as pessoas cegas continuam a tocar depois com violino, violão, concertina ou gaita-de-fole.

PR - No próximo dia 26 de Agosto, as canções deste disco são apresentadas no Auditório Municipal do Peso da Régua. O que é o público pode esperar deste concerto?

Ariel Ninas - Um concerto entretido e interessante com uns textos muito diversos que falam de amores tristes, namoros divertidos, crimes horríveis, romances engraçados, vida de santa,... tudo cantado com o sotaque beirense do César Prata e o o meu galego próprio. Não há só voz ou sanfona, também distintas guitarras, adufes, gaita de beiços, percussões miúdas... E algo que não incluímos no disco como é a voz de algum informante ao começo de alguma canção. Vai ser algo mais de uma hora da nossa versão de música popular galego-portuguesa que cantaram ceguinhos e ceguinhas no quadro noroeste da Península Ibérica. Estou certo que a gente vai confirmar as semelhanças culturais entre as duas beiras do Minho que a fronteira política não pode separar.



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