19/08/2017

SAGA CEGA | Discurso Direto


Saga Cega é o mais recente projecto do guitarrista e compositor Nuno Costa, uma formação que, pela primeira vez na sua carreira, se afasta dos domínios do jazz e que reúne no álbum “À Deriva” treze canções originais, interpretadas em português e por alguns dos mais conceituados músicos nacionais. Hoje em "Discurso Direto" é meu convidado Nuno Costa.

Portugal rebelde - Sendo um músico há muito conectado com o Jazz, como é que o foi o processo de composição deste disco?

Nuno Costa - O processo de composição foi em muito semelhante ao dos discos anteriores. Acima de tudo, tento sempre que seja simples. Geralmente não procuro nada de antemão e não coloco grandes entraves (dentro do meu alcance ou dos meus limites musicais) mas neste trabalho tive que ressalvar algumas premissas: sabia que não queria um disco de jazz, que não iria procurar momentos para improvisação e sabia que procurava uma canção que pudesse suportar um texto com base na repetição de secções. De resto, limitei-me a tocar guitarra e a ir atrás de uma ideia que pudesse surgir, sem pensar antecipadamente no número de secções, se excedia os minutos ou outras barreiras do que é comercialmente aconselhável e aceitável. Para este disco em particular cheguei a utilizar uma afinação diferente da afinação standard na guitarra para não me sentir condicionado (mesmo que de forma inconsciente) e poder explorar sons sem pensar se estava a facilitar, a complicar ou a recorrer a uma progressão harmónica mais ou menos óbvia. Se soa bem, soa bem! É assim com o ritmo e com as melodias que canto por cima da sequência de acordes. É assim também com a electrónica quando exploro sons de pedais e guitarras acústicas (Caso do tema Siga a Saga com guitarra de 12 cordas e harmonizer). Ser músico de jazz, por si só, nunca poderia justificar a necessidade de adoptar um ritmo mais complexo e menos comum ou uma melodia mais rebuscada. O que procuro é que uma canção se desenvolva e evolua de uma forma natural, o que por vezes pode explorar caminhos menos óbvios e noutras, lugares mais comuns. Interessa apenas que me soe bem e que no seu todo tenha um sentido.

PR - Alguma vez sentiu que estava em território Rock ou deixou-se ir “à deriva” ?

Nuno Costa - Comecei a tocar guitarra por causa do rock ou de músicas ligadas ao género. Era a música que ouvia exclusivamente na altura e que continua ainda hoje a ser parte das minhas escolhas. O jazz surge mais tarde quando entro para a escola do Hot Clube. (Muitas outras surgiram entretanto…) Durante muito tempo pensei que era um músico de jazz “emprestado”. Nos finais dos anos 90 e início do novo século, o que era referido como jazz ou considerado mainstream era a corrente que dominava os finais dos anos 40 e as décadas de 50 e 60. Música que respeitava e respeito muito e aprendi genuinamente a gostar mas que nunca consegui interpretar de uma forma natural e intuitiva. A música é muitas vezes referida como uma linguagem e é como se neste campo específico sentisse que falava a língua com bastante sotaque. Descobri mais tarde que afinal era possível seguir o caminho que quiséssemos seguir, independentemente da nossa música obedecer ou não a determinados parâmetros. Para essa descoberta muito contribuíram os músicos que gravaram o meu primeiro disco. Tenho alguma dificuldade em definir este disco como rock ou pop. Admito que não conheço bem essas fronteiras mas posso assegurar que jazz é que não é. Ao compor para o “À Deriva”, senti que estava fora do meu território habitual mas senti igualmente que isso poderia ser positivo no resultado final. Nas nossas várias etapas a música que fazemos é um reflexo do que sabemos, do que somos e também daquilo em que nos tornámos. Nesta fase não faria sentido fugir a tudo isso.

PR - Tatanka e Cristina Branco são os convidados deste disco de estreia. Na fase da composição, alguma vez lhe passou pela cabeça esta possibilidade”?

Nuno Costa - Na fase de composição, não. Na pós produção, sim. Ou seja, foram músicos que, tal como os outros no disco, entendi que iriam favorecer a música. Conheço o Pedro (Tatanka) desde que comecei a tocar. Já lá vão mais de 20 anos e, apesar de ele ser mais novo, nenhum de nós é propriamente velho! Na altura era uma promessa, hoje em dia é um craque, com uma capacidade absolutamente incrível de ouvir, criar e interpretar música. O “A Mil” foi convite meu e as segundas vozes no “Pé de Dança” foram sugestão dele. Entusiasmou-se e as segundas vozes no último refrão do “A Mil” foram ideia dele também. O convite à Cristina surgiu no final de uma apresentação do disco “Menina” na Festa do Avante!. Eu tinha tocado umas horas antes com o meu quinteto e fiquei para assistir ao concerto na lateral do palco e foi um super concerto. No final lancei o convite para cantar o “Sem Tempo”. Como intérprete é absolutamente incrível e aqui reinventou a melodia em todos os takes e tal como num disco de jazz a grande dificuldade foi tentar eleger o melhor.

PR - “A Mil” foi a canção escolhida para single de apresentação deste álbum. Este é o tema que melhor caracteriza o “espírito” deste “À Deriva”?

Nuno Costa - A escolha de “singles” é uma novidade para mim. Se pelo lado musical não quis ou não pensei em fazer grandes concessões, sabia que teria sempre de eleger a canção que melhor se adaptasse ao conceito de single e esta foi a escolhida porque é a que mais se adapta aos ditos padrões. Já antes da participação do Pedro tinha sido a eleita para a frente de batalha. Não foi uma escolha consensual mas alguma teria que ser…



PR - Numa frase como caracterizaria este disco?

Nuno Costa - Tenho uma filha que diz que está ”fri!” e outra que está “quenca!”

PR - O músico João Firmino, afirmou recentemente no “Ípsilon” que «o Jazz é sempre mais uma viagem ao umbigo do seu líder, enquanto na Pop a permissa é mais directa». Está de acordo?

Nuno Costa - Embora não me reveja propriamente na afirmação, concordo que num contexto “tradicional” jazzístico talvez assim seja. Tradicional no sentido em que muitos discos (talvez até a maioria) têm o líder que assume todas as responsabilidades de um disco, desde as composições ou outro repertório que os favoreça, desempenhando um lugar de destaque nas introduções, no acompanhamento (no caso dos instrumentos harmónicos) e nos solos dos temas. Essa tendência é mais ou menos notória em função do instrumento que lidera. Um sopro terá porventura ainda uma maior presença que um instrumento da secção rítmica, embora se possam igualmente colocar em evidência em vários momentos do tema. Na pop o lugar de destaque é sempre o do cantor, remetendo para segundo plano os restantes músicos e até o compositor. No entanto não é algo que aplique à forma como faço música ou como lidero os meus projectos. Nunca procurei um lugar de destaque para a guitarra porque é o meu disco. Em todos os meus trabalhos há temas em que não improviso porque não achei que favorecesse a música. Os destaques são definidos em função do que acho que a música necessita. Algumas das críticas que saíram sobre esses discos referiam precisamente esse lado. Ao início se calhar até achavam que seria por falta de confiança mas a verdade é que não o era e não é. Tem apenas a ver com o equilíbrio que procuro que a música tenha. Há uma participação muita activa de todos os músicos nos meus temas. O contributo deles foi e é enorme para o que são os meus trabalhos e para o que sou enquanto músico. Os discos de jazz simplesmente não seriam iguais se contassem com outros músicos. Musicalmente e enquanto compositor, sou eu que sugiro o ponto de partida e por vezes o de chegada mas o caminho entre os dois é quase sempre decidido em conjunto. Por todas as ferramentas de que dispõe, um improvisador tem um lado composicional, diria que quase inato, contribuindo em trabalhos nesta linguagem muito mais do que um mero executante. Este último disco “À Deriva”, por razões óbvias, não oferece a oportunidade para uma criatividade espontânea em estúdio porque muitas das premissas são pré-definidas mas até as canções ganharem esse lado hermético houve um enorme contributo de todos. Num projecto como Saga Cega o equilíbrio entre músicos e/ou instrumentos acaba por nunca existir, uma vez que a Rita Maria tem naturalmente o lugar de destaque. Em relação ao “A Mil” cheguei a ler, algures online, uma discussão sobre qual dos cantores seria o compositor do tema, sem nunca colocarem a hipótese de poder ser outro músico. Algo que obviamente não levei a mal mas que apenas serve para fundamentar a exclusão de quem não canta neste género musical.

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