15/08/2018

JORGE FERRAZ | Discurso Direto


Hoje em "Discurso Direto" é meu convidado Jorge Ferraz. Músico-guitarrista (embora trabalhe com muito equipamento electrónico e digital, a guitarra e a guitartrónica são a sua grande obsessão), compositor e produtor, fundou e liderou algumas bandas portuguesas underground desde 1983, com destaque para Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre! (cujo primeiro disco foi considerado em 1998, num trabalho conjunto do Público e da Fnac, um dos melhores discos da música popular portuguesa de 1960 a 1997), Ezra Pound e a Loucura, ou Fatimah X. Em 2006 passou a trabalhar em nome próprio, tendo publicado, desde então, dois álbuns (2008 e 2010). "Machines dor Don Quixote ...et... viva la muerte?" (2018) marca o regresso do músico às edições discográficas.

O que posso dizer sobre “Machines for Don Quixote ... et viva la muerte?” e as suas 16 músicas?

1º: olhar para os títulos do álbum e dos temas. São frases & slogans poéticos que indicam o imaginário e os assuntos por detrás desta edição e aparecem como uma espécie de letras das músicas que, à excepção de duas, são todas instrumentais.

2º ver quais as quatro partes em que se arrumam as músicas. Exprimem uma viagem pelo imaginário do álbum, bem como pelas suas influências estético-musicais.

3º o que é unificador, qual é o meu objectivo criativo principal? O que eu chamo de guitartrónica pessoal desenvolvida em formas variadas de músicas de adeus com ritmos saltitantes e ruídos lá dentro.

Nota: Os sons ouvidos (com excepção das percussões, programadas) foram quase todos tocados e gravados usando guitarra eléctrica (por vezes recorrendo a tecnologia audio-to-midi).

Tema a tema:

Intro:

“Beirut, the policeman said”

Este tema, que tanto caberia no capítulo rock como jazz, é uma versão de uma música de uma antiga banda que fundei (os “Santa Maria, Gasolina em teu Ventre!”) que nunca tinha sido editada e gravada em estúdio. Nela, podem ouvir solos de guitarra - a lembrar escalas orientais - e suaves sonoridades de guitarra noisy a jogarem entre si num tempo de valsa sobre o qual assenta um ritmo híbrido de jazz-funk. A serenidade perante o tumulto.

Parte 1: Up and down electronic orchestral music invaded by a not so gentle electric guitar

“Pasolini loves sci-fi”~

Exprime uma paixão pelo cinema lo-fi de Pasolini, quando este tratava temas e épocas da antiguidade clássica. Como? Com uma simples linha melódica assente num conjunto de falsas cordas e assomos de guitarra+delay que bebe inspiração nas peças de sinfonias de música clássica tratadas herética mas carinhosamente pelo uso de manipulações electrónicas e de falsas fitas magnéticas que aceleram e desaceleram.



“Industrial bruja”

Entram bruxas servidas por órgão e percussão de orquestra. A cena acaba muito rapidamente.

“Laser beam”

Assenta numa melodia de mistério que introduz o ambiente a bordo de uma nave espacial às voltas, sem rumo. Apresenta-se sob a capa de um falso quarteto de cordas e serve-se de percussão esparsa, ruídos à solta e teremim enganador.

Parte 2: Free-rock songs for losers and romantics

“There is no second time and I feel fine”

Este tema, um dos dois que é vocalizado, começa por ser um power-rock inspirado nos Stooges, pois, além de adorar o grupo, penso que é das formas mais eficazes de encarnar em música popular urbana as manifestações de violência absurda e subterrânea: aqui, o inaceitável fenómeno dos meninos-soldado. O texto traduz também isso, um poema semi-fonético, servido por uma voz com um timbre digitalmente adulterado e vagamente gótico.



“Cocteau ne me quitte pas”

Esta música está sob a influência do princípio da diversidade do onírico e de um vago surrealismo (daí, Jean Cocteau). É um tríptico construído por “escrita” automática de guitarra, em pedaços avulso que poderiam ser reunidas numa só casa: guitarras noisy e bateria em solo frenético; riff de guitarra em modo surf-music para climas frios e sem qualquer acompanhamento; uma balada de amor e adeus com batida que bebe num Sun Ra adulterado (que me encanta).

“Joy rock”

Como diz o título, uma canção que brinca livremente com um pop-rock, onde se misturam alegria e nostalgia, servido por um ritmo de dançante e juvenil.

“Disney empire”

É um tema que gravei há alguns anos como banda sonora para uma luta entre dois insectos de plástico, enquanto a branca de neve assiste impávida. Apresenta-se como espécie de mashup de originais que recombina, em várias sequências e camadas, loops de guitarras e de bateria.

“Swing phase there is no space”

Apareceu por volta da mesma altura que o tema “Disney empire” e respira muito do seu imaginário temático e musical (embora menos mashup e mais progressivo e on the road do que aquele). É uma banda sonora para a chegada do pistoleiro sem nome à cidade, o duelo com o inimigo e, por fim, a partida a caminho do sol poente, tudo em ambiente western lo-fi.

Parte 3: Slow electronic guitar conquered by irresponsible dreams

“Happy fairy inside the iron maiden”

Uma guitarra eléctrica suave, um discreto delay, um arpejo de harpa e os ruídos de almas escondidas sob a forma de animais graves e coros angelicais. Banda sonora para um imaginário filme de terror sic-fi de baixo orçamento, baseado num videojogo inacabado. Romantismo destemperado, certamente.

“Organizational behaviour to reengineering”

Como se trucidam os românticos e os trabalhadores hoje em dia? Taylorismo musical com contemporâneo palavreado bonito de gestão. Vozes, sons e pequenas melodias sufocadas por uma manto ambiental baço e por glitches súbitos e curtos.

“The bitch has flowed to die on the beach”

Compus este tema num dia de invernia em que fui para a praia e me pus a filmar as ondas cinzentas e a chuva monótona, indiferentes à minha presença. O inexorável ciclo do nada. Loops de suave sequência de guitarra avançando sempre por entre os aleatórios ruídos improvisados vindos do espaço que a tentam incomodar. Inútil lutar contra os moinhos, diria um Don Quixote mais recente que, mesmo assim, não desiste.

Parte 4: fake-Jazzy adventures with alien breakdowns and broken instruments

“Sax bitch”

Há uma secção de sopros de género jazz big band que nos apresenta uma provocadora e subversiva marcha fúnebre acompanhada pelos seus irmãos robôs e ladeada por moinhos ventosos que fazem o papel de cortejo furioso.

“Jacques Brel in the middle”

Pura e simplesmente não sei o que dizer sobre esta musica. Surgiu-me, impôs-se-me. Avança, recua, acelera, desnorteia-se. Há pequenas malhas de guitarra que se diria bonitas. Riffs curtos e límpidos. Digital editing. E, percussão, que julgo é capaz de ser influenciada pelo o que subliminarmente adoro em baterias jazzísticas.

“April as a wasteland”

Um jogo de avanços e recuos entre: acordes de guitarra eléctrica em staccato; uma percussão saltitante e endiabrada. Bom para acompanhar a leitura de poesia. Apesar do titulo evocar eventualmente T. S. Eliot, a verdade é que a vocalização metalizada e nasalada da parte 2 casa melhor com o mundo da poesia concreta.

“Blank woman”

Simplesmente, música para acompanhar a viagem de uma mulher em fuga, esvaziada. Pára, arranca, é abordada por transeuntes intrometidos, por gente que a quer fazer regressar a casa, sempre perseguida de perto por monstros que, vindos de trás, não desistem. É mais suave ao ouvido do que parece ao ser falada. Música criada sobre quatro acordes de guitarra que aparecem lentos, construindo um freeze em vibrato que parece um sintetizador em modo pad, e sobre uma bateria que percute um swing alquebrado, soluçante. A mulher, tal como a música, avança, cai, levanta-se, suspira, não grita, nunca desiste. Recomeça...

Como diria uma máquina de Don Quixote: se algo te parecer estranho ou errado, não te preocupes, confia no teu coração.

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