05/04/2019

TIAGO PEREIRA | Discurso Direto


A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria criou o seu primeiro piquenique musical em Janeiro de 2018, em Monforte da Beira. A ideia era muito simples: escolher um local fora dos grandes centros urbanos, convidar as pessoas a deslocarem-se até lá, trazendo cada uma o seu farnel, e o seu instrumento musical e partilhar as duas coisas, a música e a comida. A experiência repete-se este ano em Viana do Castelo, no dia 7 de Abril, a partir das 11 horas, no Parque da Cidade. O grande objetivo da Música Portuguesa A Gostar Dela Própria é o lembrar-nos sempre de que é urgente documentar, gravar e reutilizar fragmentos da memória de um povo. Tiago Pereira é hoje meu convidado em "Discurso Direto".

Portugal Rebelde - A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria criou o seu primeiro piquenique musical em Janeiro de 2018, em Monforte da Beira. Este ano a experiência repete-se em Viana do Castelo. Qual é o grande objetivo deste evento?

Tiago Pereira - Acima de tudo criar um espaço onde as pessoas se podem dar, confiando no ambiente à sua volta mesmo que não se conheçam umas às outras, mas onde podem ter outro tipo de identificação, que vem da partilha e da escuta e do estarem precisamente uns com os outros, sem defesas sociais, que muitas vez provêm de muita mediação tecnológica, redes sociais, computadores, telemóveis. No fundo é a possibilidade de se poder criar um outro modelo social, e isto é muito mais complexo que apenas dizer-lo. Tem a ver com uma comunhão, inerente a todos, mas que precisa de ir ao seu sentido primordial, porque está muitas vezes banalizada. Porque apenas dizer que o piquenique é querer dar espaço ao encontro, é sempre redutor. Porque é um encontro especial, tem a ver com a possibilidade de se poder ser público e protagonista ao mesmo tempo, criando em conjunto com vários, mas nunca deixando de se ser quem é. E isso é muito raro, nas sociedades de hoje em dia.

PR - Este evento propõe a união de pessoas numa partilha duma experiência de convívio através da música e da comida. Esta partilha continua a ser evidente fora dos grandes centros urbanos?

Tiago Pereira - Muitas vezes perguntam-me como eu vejo a paisagem, como vejo o país. Sinto cada vez mais que o litoral se vai tornar uma única linha urbana de Sagres a Caminha, onde as cidades já se unem todas umas às outros por complexos habitacionais que vão cada vez mais surgindo, com o abandono do interior, que é cada vez mais comprado por estrangeiros e abandonado pelas instituições. Viver fora dos centros urbanos começa a ser cada vez mais uma manifestação enorme de resiliência, quando vemos que há cada vez menos estruturas essenciais, correios, médicos, hospitais, policia. Isto implica que a partilha existe quando há pessoas. Tomamos por exemplo as matanças dos porcos, isso como as festas populares sempre juntaram muita gente, e sempre criaram essa comunhão, mas mesmo essas coisas em certos casos estão a desaparecer. lá está, há cada vez menos gente. E a partilha faz parte das pessoas, o homem enquanto espécie não consegui viver sozinho, precisa do contacto com o outro. mas mais uma vez a sociedade moderna está de certa forma a tornar-nos mais próximos com a tecnologia, mediados por aplicações, mas mais distantes fisicamente.

PR - A MPAGD é um dos maiores espólios audiovisuais de tradição oral e memória coletiva existentes em Portugal. Porque razão é urgente documentar, gravar e reutilizar fragmentos da memória de um povo?

Tiago Pereira - A memória é o presente do passado. Sem memória nada existe, a coisa mais importante na vida é a memória. Sem ela não pode haver amor, nem amizade, nem nada. Porque se não nos lembramos dos entes queridos, como os poderemos amar? Documentar é memorizar, é deixar aquele momento, aquele aqui e agora registado. A partir do momento em que se grava está-se a fazer isso. Mas é algo que é sempre urgente em todos os tempos. E cada tempo tem para isso os seus protagonistas, a MPAGDP como outras entidades e pessoas fazem-no neste tempo, tal como outros o fizeram noutro, O Artur Santos, o Giacometti, o Armando Leça, o Ernesto Veiga de Oliveira. O reutilizar os fragmentos tem a ver com a possibilidade maravilhosa a de se manter a memória mais activa e viva, utilizando tudo e não deixando nada na gaveta de se poder ao invés de fazer um arquivo morto, fazer-se um arquivo vivo e criara uma espécie de Scrabble da memória, onde podemos criar novas coisas com ela.

PR - Esta consciencialização, é essencialmente um mecanismo de alfabetização da memória?

Tiago Pereira - O que a MAPGDP mais deseja é que as pessoas entendam que é preciso registar, gravar, que urge, porque vivemos numa transição temporal, da memória oral, porque por várias razões, a maior parte das pessoas que ainda sabe romances de cor, ou canções ou danças de uma determinada época, as pessoas que trabalhavam no campo na segunda metade do século XX, está a desaparecer e falamos de pessoas que nasceram até 1945/1950. Essas são as que ainda viveram um tempo em que o rádio e televisão ainda não estavam acessíveis a todos e que o seu lazer era cantar e dançar e contar histórias uns aos outros ao serão e depois do trabalho, mas hoje essas pessoas estão a desaparecer. A Alfabetização da memória é isso, é consciencializar as pessoas, que hoje muitos são os que sabem coisas de cor e que a memória é cada vez mais utilizada apenas em certos espaços e por profissionais, os músicos, os actores. De resto as pessoas tê, formas de se lembrarem das coisas. E que se não gravamos há coisas que não podem ficar para o futuro. E é preciso que fiquem, para se poder comparar, para se poder ver as transformações e entender que a evolução não é sempre necessariamente boa, nem o contrário. Eu hoje em dia vou gravar a um local e chego a casa e ouço o que os outros antes de mim, gravaram nesse mesmo lugar e entendo as diferenças e isso enriquece-me e faz-me entender melhor esse local. A Alfabetização da memória é despertar as pessoas para a importância do registo.

PR - Com mais de 2160 projectos musicais diferentes e 4000 vídeos, A MPGAD está presente na Antena 1, Antena 2 e RTP Memória, para além da internet. Ainda faz programação musical, tendo um palco, em nome próprio, no festival Bons Sons, desde 2012. Ainda há algum “desafio” que queiras realizar?

Tiago Pereira - Serei sempre insatisfeito, preciso sempre de criar novos usos para as mesmas coisas e quero sempre chegar a mais pessoas, com o meu trabalho. Há sempre cosias para gravar, atenção para nivelar. Lutar para que a música feita pelos no seu sentido primordial, ou seja para si mesma, tenha reconhecimento e espaço de atenção. Para isso são precisos muitos palcos e mais programas de rádio e mais televisão. Porque infelizmente os meios de comunicação, estão cada vez mais viciadas e cheio de coisas vazias. E há tanto para mostrar.

Sem comentários:

/>