07/08/2020

MIGUEL CARVALHO | Discurso Direto

Chegou recentemente às livrarias "Amália - Ditadura e Revolução - A história secreta", uma investigação jornalística de Miguel Carvalho que atravessa dois regimes, vários continentes e reúne perto de uma centena de entrevistas e depoimentos exclusivos, gravações inéditas da fadista e de personalidades que com ela conviveram, milhares de páginas de documentos nunca revelados, além de cartas e fotografias desconhecidas da cantora. O jornalista Miguel Carvalho é hoje meu convidado em "Discurso Direto".
 
Portugal Rebelde - É verdade, que o o álbum “Fado Bailado” de Rão Kyao é um dos grandes “culpados” pelo trabalho desenvolvido no livro “Amália – Ditadura e Revolução”? 

Miguel Carvalho - Foi através desse disco que eu, com 13, 14 anos, “cheguei” a Amália. Lá em casa não se ouvia discos dela, embora alguns setores da família apreciassem fado. O “Fado Bailado” abriu-me as portas para conhecer a voz, o reportório e tornar-me cada vez mais familiarizado com o seu percurso artístico e o seu talento, que aprofundei também inspirado pelos textos de Miguel Esteves Cardoso nos jornais e em parte reunidos num livro que esteve anos esquecido e foi, há uns anos, justamente reeditado, o “Escrítica Pop”. Mas o “clique” para a investigação deu-se a partir das inúmeras declarações e trabalhos jornalísticos produzidos a partir da notícia do falecimento de Amália. Nomeadamente, as palavras de José Saramago, em Paris, em que se refere expressamente às colaborações e apoios clandestinos da Amália aos setores que lutavam contra a ditadura, próximos do PCP. 

PR - Para além da carreira artística, as histórias que o moveram para esta obra foram o percurso de Amália através dos dois regimes (Ditadura e Revolução)

Miguel Carvalho - A motivação maior foi perceber que este lado mais humano da Amália permanecia clandestino, em segredo ou sussurrado, à espera de que alguém fizesse luz sobre ele. Queria investigar e desenterrar o que fosse possível sobre a forma como o seu percurso artístico e pessoal conflituaram ou se relacionaram com os dois regimes. Nos primeiros anos após a morte de Amália Rodrigues fui mergulhando nas bibliotecas, nos arquivos ou puxando o fio a conversas, sem que houvesse um “timing” ou um propósito de publicação. Acumulei material, pistas, pequenos papéis com dicas, testemunhos ou contactos com calma. Até que, há dois anos, a criação da Bolsa de Investigação Jornalística da Gulbenkian permitiu-me o que faltava: propor um projeto centrado nas relações da Amália com a oposição à ditadura e tentar obter os recursos financeiros para tal. Com a atribuição da bolsa, pude, assim, evitar que alguns testemunhos se perdessem, apesar da idade avançada de alguns entrevistados, e publicar essa investigação na Visão Biografia. Mas, no decurso desse trabalho, percebi que tinha algo maior em mãos: obtive tantos documentos, histórias e depoimentos, inclusive sobre o período pós-revolução, que seria um desperdício e até criminoso não tentar publicar toda a investigação em livro. E assim foi. 
PR - Que Amália descobriu nas suas investigações? 

Miguel Carvalho - Uma mulher muito mais densa do que a Amália que eu procurava. Uma artista que apesar de namorada e aproveitada pela ditadura, nunca perdeu a sua integridade nem faltou a todos aqueles que, na oposição e combate ao regime, lhe pediam ajuda. Foi solidária com famílias de presos políticos e diversos elementos relevantes ou menos relevantes da resistência antifascista. E a minha maior surpresa foi saber que esses apoios clandestinos foram bastante prolongados no tempo e significativos do ponto de vista financeiro. No pós-25 de Abril, Amália deu também provas da sua integridade. Acusada de ser colaboradora da PIDE e cantora ao serviço da ditadura, resistiu a todos os boatos, invejas, calúnias e tentativas de silenciamento, sem nunca ceder à tentação de revelar o que tinha feito clandestinamente no passado. Só isso, revela o seu caráter. Quais foram as grandes dificuldades com que se debateu ao longo deste trabalho? Por um lado, desmontar algumas versões da Amália que as pessoas têm na cabeça. E certos preconceitos. Por outro – esta, sim, a maior dificuldade – correr contra o tempo para evitar que certos testemunhos importantes se perdessem de vez. 

 PR - Amália continua a ser uma obra aberta? 

Miguel Carvalho - Creio que sim. Não sou historiador, sou jornalista. Mas através desse meu ofício, quis deixar um contributo para que Amália Rodrigues possa ser olhada e estudada de uma forma mais plural, menos preconceituosa e convencional. Assistimos a muitas beatificações e mitomanias, mas Amália está muito para além disso. E continua, nas suas mais diversas facetas, a ser uma obra aberta. Imperfeita e cheia de costuras, como a vida. Mas, até por isso, mais fascinante. 

 PR - Para terminar, há algum fado de Amália que o toque particularmente? 

Miguel Carvalho - O Abandono/Fado de Peniche foi o que escutei mais vezes durante a investigação e a escrita do livro e é, para mim, de valor superlativo, até pelo seu simbolismo. Mas uma das músicas que me foi dada a conhecer no ano passado pelo Frederico Santiago – Fui à Fonte Lavar os Cabelos - inédita e entretanto incluída na reedição do Com que Voz, é das canções mais belas que ouvi.

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