04/09/2021

CARLOS GOMES | Discurso Direto


A Estrada é uma linha de asfalto sinuosa e transversal ao litoral alentejano, que liga o festo da Serra de São Francisco ao areal da Costa de Santo André, decalcando a espinha dorsal de uma morfologia costeira que desce a encosta da serra, espraiando-se no mar. A Estrada reúne, dialoga e entrelaça os caminhos dos que a vivem diariamente e dos forasteiros que a atravessam. A Estrada é o lugar para observar tradições, refletir transições e induzir transformações. Um meta-lugar, entre a realidade física dessa linha e os imaginários em torno desta e de outras estradas que percorremos, enquanto nos confrontamos com elementos que nos ligam ao entendimento do território: aldeia, fábrica, monte, venda, lagar, montado, asfalto, ruína, areia, vento, céu e mar. O Festival A Estrada é uma proposta da Transiberia em parceria com a Artéria e o Município de Santiago do Cacém, a cruzar caminhos para a qualificação e dinamização da oferta cultural da região, que decorre entre 8 e 12 de Setembro. Carlos Gomes, diretor artístico do Festival A estrada é hoje meu convidado em "Discurso Direto".

Portugal Rebelde - Da aldeia de São Francisco da Serra à praia da Costa de Santo André, é este o território para experienciar e descobrir na primeira edição do Festival A estrada? 

Carlos Gomes - Sim, ao longo da Estrada Municipal 544. Esta estrada, tem a particularidade de ligar a Serra de São Francisco ao Oceano Atlântico, serpenteando por entre o montado, o casario disperso e as hortas, até ao ecossistema da Lagoa de Santo André, sempre com o azul do mar em pano de fundo. Uma Estrada que reúne, dialoga e entrelaça os caminhos dos que a vivem diariamente e dos forasteiros que a atravessam, tal autêntica espinha dorsal de uma faixa de território, todo ele costeiro, desde a linha de festo das Serras de Grândola e de São Francisco, decalcada pela IP8, sempre a descer pela encosta até ao mar, todo ele influenciado pela presença massiva do Oceano Atlântico a perder de vista. 

PR - No seu ano 0, este Festival risca no território uma programação cultural que cruza as expressões artísticas locais, como o cante alentejano das Vozes d’Além Tejo e o acordeão de Maria Adélia Botelho, com outras expressões artísticas contemporâneas fundadas na tradição, como os Sampladélicos e O Gajo. Quer falar-nos um pouco mais destas propostas? 

Carlos Gomes - O Tiago Pereira, mentor do projeto a Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP) e o seu companheiro no duo Sampladélicos, Silvio Rosado, aterram no festival no dia 9 de Setembro: para o Tiago mostrar, no Palco Serra, o filme que fez em 2008 sobre as Valsas Mandadas, mas também para iniciarem uma residência artística com o grupo de cante feminino Vozes Além’Tejo, cujo resultado final teremos oportunidade de apreciar no último dia do festival, 12 de Setembro, no Palco Praia, ao Pôr do Sol. Será como mondar as ondas do mar com o cante alentejano, interagindo não com as cearas mas com o Oceano Atlântico e a planície azul. Mas pelo meio, os dois apresentam-se ainda como Sampladélicos, no Palco Estrada, no Lugar do Farrobo, reinterpretando várias tradições musicais portuguesas e integrando-as em novas composições, por recurso a samples de vídeo das recolhas da MPAGDP. Já O Gajo, pegou na Viola Campaniça para refundar o lugar deste instrumento tradicional alentejano na música portuguesa, através de composições próprias plenas de virtuosismo e intensidade que resultam numa espécie de nova sonoridade do instrumento. Maria Adélia, música e professora de acordeão já com uma carreira de mais de 40 anos, para além de intérprete de excelência, teve e tem um lugar central na formação musical da região e na revitalização e divulgação da tradição local das valsas mandadas, tendo ensinado muitos daqueles que hoje asseguram a sua continuidade. É muito provável que tenhamos ainda a oportunidade de testemunhar, in loco, o cruzamento da viola campaniça de O Gajo com o acordeão de Maria Adélia. Mas entre outros cruzamentos, convoca-se ainda a música improvisada de Charlie Mancini para um diálogo com a natureza em torno da Lagoa de Santo André e junta-se Gaspar Varela, jovem talento da guitarra portuguesa, bisneto da grande referência do fado, Celeste Rodrigues, com o seu mestre, Paulo Parreira, com ascendência em São Francisco da Serra, cruzando na praia, e num concerto único, o som do vento e do mar com o das guitarras. 

PR - Para além da música, o que é que A estrada nos tem para oferecer nestes 5 dias do Festival?

Carlos Gomes - Muita coisa: instalações artísticas, teatro, cinema, conversas, caminhadas e gastronomia. O Teatro do Mar apresenta a instalação cenográfica INSOMNIO, no centro da Aldeia de São Francisco da Serra, e o grupo de teatro de Santo André, Gato SA, sobe à serra para interpretar a obra “Os Malteses” de Manuel da Fonseca, escritor nascido em Santiago do Cacém. A programação também propõe a visita ao Lagar do Parral, com um século de existência e hoje em dia em plena laboração, seguida de um almoço-concerto-convívio com o grupo “Falta Um” servido com um conjunto de iguarias locais de “comer e chorar por mais”. Mas há ainda conversas temáticas, sobre as Valsas Mandadas e o conceito de Território Cultural, caminhadas até à Ermida do Livramento, em plena Serra de São Francisco e no interior do Salgueiral, lugar particular do ecossistema da Lagoa de Santo André; e para além do Manda Adiante, de Tiago Pereira, já referido, podemos também ver os belíssimos filmes de Diogo Vilhena, Mar de Sines e uma curta-surpresa do jovem realizador, nascido em Santiago do Cacém, Gonçalo Almeida. Ao longo da estrada municipal 544, residentes e visitantes são ainda desafiados a pensar e a explorar o território, por um conjunto de inscrições no asfalto e no amarelo próprio da sinalética das estradas, em resultado de uma colaboração entre a equipa criativa do festival e o coletivo No Art Limit, graffiters e “street artists” de Vila Nova de Santo André. 

PR - Um dos objetivos do Festival A estrada é cruzar memória, tradição e inovação, em interação com os lugares do festival, com os habitantes locais e com os visitantes? 

Carlos Gomes - Sim. Cruzar memória, tradição e inovação é cruzar caminhos para a qualificação e dinamização da oferta cultural da região e desenvolver um público próprio, cioso da sua cultura e curioso pela cultura dos outros. Através de uma programação fundada na relação entre propostas artísticas contemporâneas e a especificidade da cultura local, quer-se potenciar outros cruzamentos e outras leituras do território na confrontação sensível dos espaços do quotidiano e de outros mais inusitados, com as propostas artísticas apresentadas, cuidadosamente destinadas a um público que se quer desenvolver, nesse trânsito e nesse cruzamento entre quem vive ao longo de todo o ano no território abrangido pelo festival e quem vier visitar os lugares da estrada em função da sua proposta programática. 2021 será uma espécie de ano 0, de auscultação e tração ao terreno. 

PR - Para terminar, indique 3 boas razões para que ninguém deixe de marcar presença nesta primeira edição do Festival A Estrada 

Carlos Gomes - É muito difícil, porque há variadíssimas razões para não deixar de marcar presença nesta primeira edição do festival, a começar pela própria estrada que lhe dá nome e pelos próprios lugares fundadores da sua realização. Mas se tivesse que escolher três momentos: 1 - Sem dúvida, o concerto das guitarras de Gaspar Varela e Paulo Parreira, a fechar o festival, no dia 12 no Palco Praia, em plena Praia da Costa de Santo André em frente ao Beach Lounge Lagoa ó Mar. 2 - O cruzamento entre a sonoridade tradicional e virtuosa do acordeão de Maria Adélia Botelho e o virtuosismo contemporâneo da viola campaniça de O GAJO. 3 – Toda a programação do dia 11, no Palco Lagoa, com um conjunto de propostas que interage com a beleza natural do lugar/eira, pouco conhecido, que é o Monte do Paio.

Sem comentários:

/>