Há muito que é sabida e reconhecida a grande paixão e aturada pesquisa que Júlio Pereira tem vindo a dedicar a esse instrumento tão peculiar que é o cavaquinho. No passado dia 13 de Maio, a Associação Cultural Museu Cavaquinho, fundada por este músico e compositor, lançou o CD “Cavaquinhos.pt”, o primeiro disco coletivo de originais por tocadores de Cavaquinho e Braguinha editado em Portugal. Pela primeira vez podemos apreciar numa mesma obra, um espectro tímbrico muito completo dos pequenos tetracórdios de mão portugueses. Igualmente pioneira é a inclusão nesta compilação de exemplos do cavaquinho urbano tornado popular durante o século XIX no continente, e que agora se estreia com novas composições. Hoje em "Discurso Direto" é meu convidado Júlio Pereira.
Portugal Rebelde - A Associação Cultural Museu Cavaquinho acaba de lançar o disco “Cavaquinhos.pt”. Este disco coletivo reforça a ideia, que este instrumento continua em “boas mãos” de norte a sul do país, não esquecendo as ilhas?
Júlio Pereira - Até 2013 – ano da constituição da Associação – havia apenas um disco de cavaquinho enquanto instrumento solista. Até hoje a Associação publicou mais três: “O Cavaquinho do Amadeu” de Amadeu Magalhães, 2015, “Cavaquinho Cantado” de Daniel Pereira, 2017 e agora o “Cavaquinhos.pt”.
Paralelamente foram gravados o cd “Boca De Raia “de Pedro João/Palankalama, "Machitz" de Roberto Moritz, 2020 e eu próprio gravei “Cavaquinho.pt” em 2013 e “Praça do Comércio” em 2017. Para além de outros músicos - ainda que sem conteúdo original – como, por ex. o Xico Malheiro. Ora todas estas publicações mostram claramente que a prática do cavaquinho está realmente viva e a crescer.
Quando perguntas se o cavaquinho continua em “boas mãos”, acho que o importante percebermos que a riqueza da prática de um instrumento está no conjunto de duas coisas: aquilo é fruto dos músicos profissionais, mas também no que é fruto dos tocadores amadores pois são geradores de vários acontecimentos sociais: estou a lembrar-me de um grupo que escreveu no Facebook: - somos um grupo de cavaquinhos e oferecemo-nos para tocar em creches e lares de terceira idade! E deixava o número de telefone!
PR - Este registo procura também de alguma forma mostrar a diversidade dos pequenos cordofones de mão praticados em Portugal?
Júlio Pereira - Pois acho que é mesmo aquilo que mostra! Repara: o instrumento mais conhecido é o cavaquinho minhoto (só na Madeira existe a prática do braguinha) e a prática de um instrumento vive no meio de três universos: os músicos, os construtores e os estudiosos; acontece que ultimamente tem avançado mais do que em qualquer passado porque tem havido uma espécie de coincidência entre as partes deste triângulo (obviamente a internet tem sido uma ajuda). Dou um exemplo: Numa altura em que os estudiosos começam a publicar mais informação sobre o cavaquinho urbano (prática existente nas cidades de Lisboa, Coimbra e Porto até aos anos 1920) alguns músicos começam a interessar-se por ele e claro, a tocá-lo (o Pedro Caldeira Cabral, por exemplo, deu aulas na Universidade de Aveiro) e em simultâneo com o próprio interesse de construtores em querer fazer réplicas de modelos de autores do passado (ex: Fernando Meireles, Orlando Trindade, Diogo Valente). Ora, o resultado disto só pode ser bom, pois renascendo um instrumento adormecido durante um século e que agora podemos ouvir o seu som através deste disco, poderá encontrar novos entusiastas deste tipo de cavaquinho.
PR - O Minho continua a ser a região do país onde este instrumento ocupa um lugar de destaque?
Júlio Pereira - Não creio que hoje possamos afirmar isso, No Minho existiu a maior prática do cavaquinho “minhoto” - a mais conhecida do público em geral - que, com o tempo, se foi estendendo um pouco por todo o País. (eu próprio sou de Lisboa e toco cavaquinho minhoto). É bom lembrar que “o lugar de destaque” que falas envolve várias componentes: a nível da qualidade de construção, a nível da qualidade do ensino e consequente desempenho na execução do instrumento)
Hoje em dia há indicadores de que o cenário está a mudar. Por exemplo, no continente, no que toca à atividade social (festas, convívios, concertos, encontros, etc.) gerada pelos grupos de cavaquinhos – e vou referir só alguns distritos – Braga conta com cerca de 50 grupos, Porto com 60, Lisboa com 40, Coimbra com 20, Aveiro com 15, Viseu com 18, Setúbal com 12, Viana do Castelo com 12, Leiria com 15…
No disco Cavaquinhos.pt agora editado é um coletivo de 13 tocadores: Distrito de Braga: Daniel Pereira Cristo, Renaldo Marques, Hélder Costa, Sérgio Mirra, Distrito de Coimbra – Carlos Batista, João Vila, Paulo Bastos, Luís Peixoto, Distrito do Funchal – Roberto Moritz, Paulo Esteireiro, Distrito de Santarém: – João Frazão, Distrito do Porto: – Pedro João e Distrito de Lisboa: – Júlio Pereira. Estes acontecimentos dão para ter noção que a prática do Cavaquinho é generalizada pelo país.
PR - Paralelamente, o Júlio, também gravou nos últimos anos dois discos totalmente dedicados a este instrumento: “Cavaquinho.pt” (2013) e “Praça do Comércio” (2017) onde recebeu dois prémios: “Prémio SPA” e “Prémio José Afonso”. Há intenção de editar mais algum mais trabalho dedicado a este cordofone?
Júlio Pereira - Não gosto muito de falar nas ideias que tenho porque às vezes acabo por fazer outra coisa ao contrário. Seja como for gostava de ainda fazer dois trabalhos com o cavaquinho.
PR - A Associação Museu Cavaquinho, da qual o Júlio é presidente, acaba de submeter a candidatura dos construtores de cavaquinho a Património Cultural Imaterial: Saberes e práticas tradicionais de construção do cavaquinho. Quer falar-nos um pouco mais da importância desta ação?
Júlio Pereira - O que está aqui em causa é a tradição na construção do cavaquinho (o minhoto, o urbano e a braguinha). Para que uma tradição não morra (aliás, para que melhor viva) é necessário um plano de salvaguarda. Algo ser considerado Património Nacional implica sentido de responsabilidade e por isso foi um trabalho desenvolvido a partir de um protocolo de colaboração que a AC Museu Cavaquinho assinou com a Direção Geral do Património Cultural com recurso a métodos e técnicas de pesquisa etnográfica, com o objetivo de documentar os saberes e as técnicas relativos à construção do cavaquinho. Para realizar este trabalho contámos com o apoio das cidades transversais à prática do cavaquinho, com os quais a nossa associação assinou igualmente protocolos de colaboração efectiva com as suas Câmaras Municipais: Braga, Coimbra, Funchal, Lisboa e Viana do Castelo.
Os protagonistas desta tradição continuada são o trabalho - a dedicação de uma vida- dos violeiros/luthiers/construtores de cavaquinhos. Uma fonte de sabedoria e prática tradicional que deve deverá ser considerada por todos nós e pelo Estado (levando em conta o panorama na construção de cordofones na Europa) e de um futuro que só pode trazer algo de bom para a continuada tradição de construir, para os próprios construtores e para os seus respetivos Municípios.
Sem comentários:
Enviar um comentário