16/06/2020

CLÃ | Discurso Direto

                                                                                                                                                           Foto: João Octávio Peixoto

"Véspera" é o mais recente registo de originais dos Clã. O nono álbum de estúdio da banda conta com 10 canções, com letras de Sérgio Godinho, Samuel Úria, Capicua, Arnaldo Antunes, Carlos Tê, Regina Guimarães e Aurora Robalinho e música de Hélder Gonçalves, compositor e fundador dos Clã. As colaborações artísticas de "Véspera" estendem-se também a uma forte componente visual e estética, entregue às mãos de Vasco Mendes (que realiza os videoclipes de "Tudo no Amor" e "Sinais") e de Joana X que, com a colaboração de Nuno Marques, tem acompanhado de perto todo o processo criativo da banda, criando pequenos filmes e imagens dos bastidores de "Véspera"Hoje em "Discurso Direto" são meus convidados Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves.

PR - É verdade que quando começaram a dar rumo às canções agrupadas neste “Véspera” havia uma espécie de sombra?

Clã- Tendo em conta o que se passa no mundo nos últimos anos, a nível político, social, ambiental, é quase impossível não sentirmos essa espécie de sombra ou sensação de ameaça sobre os nossos ombros. Vivemos tempos estranhos... Julgo que isso acabou por “contaminar” de algum modo as canções que construímos e escolhemos para este álbum – reflectem essa sombra mas também, de forma franca e despojada, assumem a vontade de não ceder ao cinismo ou ao desalento, de continuarmos a viver, a nos apaixonarmos, a resistirmos.

PR - No tema “Armário” escrito pela Capicua, cantam “Aqui no meu armário/não há verão/eu sou como canário da mina de carvão”. “Eu tenho falta de ar/preciso de sair/não dá para respirar/eu quero sair”. Alguma vez sentiram que isto pudesse acontecer?

Clã - A coincidência, às vezes literal, de muitos versos das canções do Véspera com o que vivemos nestes estranhos dias pandémicos, foi até assustadora! Mas é só uma coincidência...A primeira vez que apresentámos o Armário foi em palco, no festival Douro Rock, em Agosto do ano passado. Não fazíamos ideia que, passados 7 meses, a canção iria ser uma descrição tão exacta da realidade. Seja como for, a sensação e estado de espírito que a canção transporta já fazia sentido na altura. E, infelizmente, mesmo depois desta pandemia passar, há-de fazer ainda sentido.

PR - Para além das estreantes Capicua e Aurora Robalinho nas letras, o núcleo “duro” manteve-se: Carlos Tê, Regina Guimarães, Sérgio Godinho, Arnaldo Antunes e Samuel Úria. Como é que tem sido trabalhar com estes ilustres letristas?

Clã - Por um lado, é um enorme privilégio porque são autores extraordinários, com uma enorme mestria e sabedoria na sua escrita. Por outro lado, trabalhar com estes parceiros é também muito simples e tranquilo. Há uma enorme generosidade e entrega de todos eles ao processo criativo e um desejo comum de construirmos juntos a melhor canção possível, em que a ligação entre a música e as palavras seja certeira e necessária. Esse objectivo comum e a afinidade artística que nos liga a estes criadores, faz com que o trabalho (que é exigente) seja feito de forma franca e aberta, o que resulta para nós em processos de grande aprendizagem, sempre muito enriquecedores. Na verdade, estes nossos parceiros, sejam mais antigos ou mais recentes, são verdadeiramente do Clã.


PR - Escolheram para título deste disco “Véspera”. Qual foi o sentimento que justifica esta escolha?

Clã - O título que buscávamos tinha que passar a ideia ou sensação de estarmos na iminência de algo importante, o momento anterior a uma revelação, um cataclismo, um nascimento, um recomeço... Véspera reunia tudo isso – esse “dia antes” dum acontecimento marcante.

PR - Com os concertos a regressarem (ainda) timidamente, como é que a banda se está a preparar para aproximar as canções deste disco do público?

Clã - Neste momento, já regressámos à sala de ensaios (cumprindo todos os devidos cuidados sanitários, obviamente) para começarmos a preparar a nova digressão, que arrancará no mês de Julho.
Ainda antes do início oficial da digressão do Véspera, iremos fazer um concerto especial (mais minimal e intimista) integrado no festival Regresso ao Futuro, a 20 de Junho, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada. Este festival reúne 24 artistas e bandas, espalhados por 24 teatros por todo o país, e as receitas dos concertos revertem para o fundo social da GDA e da Audiogest. Além disso, quem quiser pode levar também bens alimentares não perecíveis que serão recolhidos nos teatros pela União Audiovisual que os distribuirá depois por profissionais do espectáculo que estejam a necessitar desse apoio. Este regresso à estrada terá que ser feito com cautela e cuidado, cumprindo todas as indicações dadas pela DGS, para que não haja nenhum retrocesso neste desconfinamento que parece estar a correr muito bem. Mas para já estamos animados e esperançados de que a conquista de alguma normalidade será possível.

PR - A indústria da música está a atravessar um tempo de muitas incertezas. Qual é a saída?

Clã - Há uma dimensão de precariedade e risco associada aos profissionais do espectáculo que já era conhecida mas que assumiu uma evidência gritante com esta pandemia. Ficou também claro o grande desconhecimento por parte dos governantes (particularmente, no caso da Ministra da Cultura) do que é a realidade do trabalho cultural e artístico, mais concretamente no que diz respeito às artes performativas. A urgência de se legislar sobre estas matérias e garantir de forma segura essa protecção económica e social é, por isso, enorme e será um instrumento muito importante em dar a segurança e estabilidade merecidas à criação e circulação artística. Há também uma crise, que já começou há algum tempo, provocada pela desvalorização da cultura, não só por ser sempre parente pobre no que são consideradas as prioridades dos povos, mas também pelo facto da desmaterialização e tendencial gratuitidade do acesso aos bens culturais lhes retirar valor. Mais uma vez, a valorização dos direitos de autor e direitos conexos, a protecção do trabalho artístico e a procura da justa remuneração dos seus criadores e intérpretes é fundamental para que a produção cultural seja sustentável e de qualidade. De resto, há que continuar a contar com a entrega e imaginação dos artistas e profissionais do espectáculo, habituados que estão a viver tempos difíceis e exigentes.





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